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ACILBUPER - REVISTA DE CIENCIAS SOCIALES DE SANTIAGO DEL ESTERO N°4/10 - Diciembre 2002 - www.acilbuper.com.ar

Ideologia do Consumo

Uma análise do consumismo a partir do ícone automóvel

 

Por: Alexandre Meira de Oliveira

 

NOTA BIOGRÁFICA 

 

A obra "Ideologia do Consumo - Uma análise consumismo a partir do ícone automóvel", foi a primeira monografia de Alexandre Meira de Oliveira, à época formando de Bacharelado do curso de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Orientado pelo Professor Doutor Carlos Eduardo Rebello de Mendonça, este trabalho conquistou nota máxima em sua defesa de monografia à 8 de março de 2002.

 

O autor deste trabalho, hoje, segue fazendo o Curso de Mestrado também em Ciências Sociais pela mesma Universidade, e paralelamente trabalha como consultor pesquisador pelo Arquivo Nacional além de lecionar sociologia em um colégio da região.

Ao final de 2002, concluiu seu segundo trabalho acadêmico, a monografia entitulada " Shopping / Fábrica: as duas faces da mesma moeda - um paralelo sobre dois símbolos do Capitalismo ", também conquistando nota máxima em sua respectiva defesa sob a orientação do mesmo professor.

Alexandre Meira de Oliveira tem 24 anos e se envereda pela linha de pesquisa classificada como Imagens, Narrativas e Práticas culturais, neste dois trabalhou o consumo como objeto de pesquisa. Considerado estando entre o discurso marxista e o discurso frankfurtiano, estes trabalhos nunca foram publicados.

 

 

Abstract

  

This work proposes a meticulous parallel about a double contradiction: Modernity x Postmodernity and Capitalism of Production x Capitalism of Consumption. It begins reconstructing the history of the capitalism from the Imperialism to the current days using the automobile as object of discussion, once this object crossed and it crosses these two stages that marked the century XX. The author makes the analysis of the production practice so much as the subjective and conceptual analysis of the called " Myth of the automobile ".

 

 

 

Palavras - chaves

Pós-Modernidade - Consumo - ideologia

  

 

Índice

 

  

AGRADECIMENTOS..................................................03

ÍNDICE.........................................................................04

INTRODUÇÃO.............................................................06

CAPÍTULO I

Uma breve análise das bases da ideologia do consumo.......15

 

CAPÍTULO II

A simbologia do automóvel no século XX ........................ 24

CAPÍTULO III

A publicidade para a ideologia do consumo ..................... 29

 

CONCLUSÃO

Considerações finais .....................................................37

 

NOTAS .......................................................................46

REFERÊNCIAS BLIOGRÁFICAS ...................................48

 

 

Introdução

 

É marcante o volume de trabalhos sobre a questão do consumo nos últimos anos. Vários autores desde o final da década de 80 e durante toda a década de 90 vem estudando em nossa sociedade quais fatores tem determinado a vida comum dos indivíduos no final do século. Mais do que isso, como estes fatores condicionam a nossa vida e que tipo de relação eles tem com a esfera política dominante em seus respectivos países, e atualmente, no mundo global.

 

É importante contextualizarmos o consumo na atualidade para depois trabalharmos suas variantes e particularidades. Dentro deste processo que vivemos é importante dizermos que nós atravessamos um período em que o capitalismo procura se adaptar diante das diferentes crises que este vem sendo obrigado a atravessar durante todo o século XX, uma sobrevida que não o isenta de suas contradições e sua inerente lógica de exploração.

Sociedade do consumo é como se convencionou classificar este tipo novo de "sociedade" que vemos emergir do solo arenoso e infértil do capitalismo tardio. E como toda sociedade trás consigo um tipo de cultura que lhe convém, eis a cultura do efêmero como característica principal desta sociedade.

Durante todo século XX vimos na arena política idéias e macro-teorias serem consumidas sob a forma de regimes e políticas de desenvolvimento. Um duelo bipolar que dividiu o planeta e foi consagrado como marca ideológica da sociedade industrial, anterior a que vivemos hoje. Com exceção do Existencialismo, a sociedade industrial direcionou todas as formas de pensamento, que se propusessem a explicar o ser humano e suas relações de produção no mundo moderno, aos antagonismos latentes do  capitalismo1 

Nesta nova sociedade ( uma reedição de um velho modelo ), vemos estas mesmas macro-teorias ruírem diante do admirável mundo novo. Verdades universais e ideologias que dividiam o mundo em dois pólos parecem não resistir mais frente ao radicalismo de identidades locais. Nacionalismos e extremismos perecem ser a forma mais eficaz hoje para se deter a onda global, viabilizada pelos meios de comunicação, pela necessidade da informação. Como  definir essa sociedade, como definir este final de século onde identidades de classes, nacionalidades e fronteiras territoriais parecem ter sido removidas com a rapidez de um clique no mouse?

É uma sociedade distinta realmente da que viu a aurora do século XX, distinta da que viu Henry Ford criar o primeiro modelo de automóvel e hoje vê produzir centenas de uma série, com a certeza de que serão consumidos.

Pós-Modernidade é o nome, ou talvez a polêmica classificação deste período que vivencia a sociedade do consumo, algo muito maior do que uma simples etapa a ser superada. Prefiro definir desta forma pois assim se convencionou chamá-la, embora não acredite que deixamos a modernidade, pelo contrário, apropriamo-nos desta ainda mais em nossa cultura, levamos as últimas instâncias seu caráter racional, calculado, funcional. Levamos as entranhas da consciência do indivíduo o que antes era manipulação do imaginário social, a pós-modernidade elege o instinto em detrimento da razão, pois o instinto não mais é o caminho sem volta de qualquer conceituação analítica, como a filosofia, a sociologia ou antropologia. O instinto agora faz parte do processo, e de maneira arriscada podemos dizer que foi instrumentalizado. Hoje, propagandas publicitárias incitam desejos, estimulam reações, manejam o que há de mais incontrolável no ser humano para dominá-lo. O desejo na era do consumo não sugere realização, o desejo sugere mais desejo e realizá-lo seria o crepúsculo do sujeito contemporâneo, descentrado, sem horizontes, melancólico2.

 

 

Sendo assim, esta nova moeda, a informação, é a ferramenta mais valiosa destes novos tempos, pois a informação é superada a todo e qualquer instante por outra informação, assim como os produtos. Assim é a cultura do efêmero.

Esta sociedade que surge capaz de descosturar a dita colcha de retalhos que são as diversas culturas e sua rigidez em relação ao local e a temporalidade, parece brincar com representações históricas e contíguas como a relação tempo/espaço. O que na sociedade industrial seria a supervalorização do tempo, com a cronometragem do tempo de trabalho, a racionalização cada vez mais totalitária utilizando o relógio como regulador das relações humanas desde as mais simples às mais complexas, parece que foi superada pelo espaço, com valorização das vivências, dos estudos culturais, das identidades locais e étnicas, como na bolsa de valores e seus últimos índices sempre indicados por cidades e capitais. O efêmero não se cronometra, pois um segundo, hoje, é pouco para o volume de novidades na era da informação e do consumo. O espelho se sobrepõe ao relógio na intimidade das relações humanas.

O espelho é a marca desta nova era, pois o espelho sugere a imagem. A imagem por sua vez é o algoz da sociedade industrial. Na sociedade do consumo, o objeto a ser consumido é o espelho das necessidades do indivíduo, encarnado no produto. O sistema se adequou a lógica individual ( é o que se tenta passar de forma ideologica e o consumidor apreende totalmente ) e não o indivíduo ao sistema, como tentou durante décadas a sociedade industrial através da produção de massa. Aliás, podemos fazer o contraponto, trabalhado muito bem por Bauman, se esta é a sociedade do consumo, a anterior pode ser considerada a sociedade dos produtores3.

Devemos então chamar a atenção para o fato de que a modernidade se adapta, assim como o capitalismo procura diferentes formas para se reproduzir e não sucumbir diante de suas próprias contradições. Dessa forma vemos a Pós-Modernidade como um desdobramento da crise da razão na Modernidade e a Sociedade do Consumo como desdobramento do capitalismo diante das crises as quais  a Sociedade Industrial se colocou.

Mike Featherstone lembra que é legitimada a idéia de que a cultura moderna foi completamente assimilada como reflexo do capitalismo industrial4. Dessa forma, abre-se um canal de associações ao tipo de realidade que vivemos hoje, e de que forma o campo das idéias, (modelo de desenvolvimento), se liga ao âmbito prático, de execução (modo-de-produção ).

Tamanha é a diferença entre as vertentes lógicas do capitalismo que muitos reconhecem este período como uma superaç  ão evolutiva do modo-de-produção, uma superação talvez entendida de maneira equivocada, tentando-se trabalhar precipitadamente os fenômenos. Mas o que se trata aqui é de uma nova adaptação do capitalismo às suas necessidades de sustentação. Uma outra hipótese a ser debatida na Pós-Modernidade é a questão da categoria trabalho como central nas relações dos homens entre si. Na chamada sociedade dos produtores é visível o antagonismo de classe expresso na indústria, por isso tínhamos nas relações trabalhistas o campo principal de luta, e local de embate dos pólos opostos do sistema capitalista. Atualmente tal foi o deslocamento na esfera de execução do capitalismo nas fábricas, da produção para o consumo, que o proletariado tido como força real e revolucionária, é cada vez mais desmobilizada e cooptada pela lógica corporativista e de flexibilização. As identidades locais, étnicas superaram as macro-identidades de trabalhador, de operário. O deslocamento dos eixos de produção trouxe consigo todo o aparato ideológico aos olhos dos cidadãos comuns, agora chamados consumidores, e tirou do proletariado a chave da mudança, do processo revolucionário.

Ainda sobre esta hipótese, é de suma importância chamarmos a atenção à posição radical e ao mesmo tempo fiel às tradicionais vias da revolução, propostas pelas teorias marxistas de Herbert Marcuse. Em A ideologia da sociedade industrial ele conclui que na sociedade unidimensional, a sua prática totalitária e alienadora inviabiliza qualquer forma de protesto e rejeição, pois sugere uma falsa idéia de soberania popular, e o povo antes tido como fermento da transformação, hoje, é fermento da coesão social5.

O movimento deve vir de fora para dentro segundo ele, pois a falência dos antagonismos e contradições diante do homem unidimensional é encarnada pelo trabalhador atual, descentrado, corporativista e utópico. Por baixo desta camada sacralizada pelas teorias revolucionárias, se esconde o chamado substrato dos párias e estranhos, os negros, as mulheres,  os desempregados e deficientes, que  segundo o autor, são os excluídos do sistemas atualmente, que compõe também a classe revolucionária, mas vêem a máquina exploradora de fora para dentro, pois o sistema não tem capacidade de os englobar totalmente.

A chave da mudança colocada acima, para este autor não foi tirada das mãos dos trabalhadores, estes apenas não se reconhecem mais e não sabem como usá-la.

A Grande Recusa, segundo Marcuse, está na quebra do racionalismo estéril proposto pela modernidade, pelo industrialismo, na negação total ao que não se enxerga, na liberdade completa, da maneira mais pura que o termo pode compreender. A liberdade pela negação, em nome do irracional contra o mundo administrado. O irracional é um manipulável instrumento da sociedade de consumo, mas passa a ser a única chama acesa para a libertação.

Esse é o berço da sociedade de consumo, é o contexto cultural que o novo século vai abrigar. O acirramento da diferença, do antagônico, do moderno e do tradicional, do real e da ficção, a tal ponto que o que era naturalmente oposto perde sentido, uma vez que todos nós, indivíduos, estamos descentrados, perdemos nossos pontos de referência. Seres humanos melancólicos e inertes frente a estroboscópica imensidão de produtos que nascem e morrem na retina. É a letargia da Pós-Modernidade.

Então, por que o automóvel em uma era que pode ser marcada pelo celular, pelo computador, pela Internet? Todas estas são inovações e eventos que tem a cara desta nova era, e podem simbolizar e caracterizar com mais clareza este período, marcado  pela mercantilização da informação, da imagem e da ficção. Por que o automóvel, que parece ter que dividir espaço no imaginário humano com estas novidades, ao contrário de antes, onde o sonho de liberdade era possível para quem pudesse dirigir em alta velocidade um Maverick ou um Porshe 936?

O automóvel foi o carro chefe ( com o perdão do trocadilho ) do capitalismo industrial, no início do século XX, e foi a verdadeira tábua de salvação para o sistema que aperfeiçoou as formas de gerenciamento científico da produção, dentro da indústria automobilística, para superar a crise pela disputa de mercado que gerou a primeira guerra mundial.

Além disso atravessou todo o século como símbolo de uma era e de uma disposição bipolar do planeta, utilizado como autêntica arma ideológica de guerra em uma disputa por áreas de influência. O sonho americano era representado pelo automóvel, assim como a democracia, a liberdade, se confunde com a posse e o prazer de dirigir um carro.

 Hoje, vemos o automóvel ainda influenciar o desenho urbano de todas as nações, perguntas sobre sua importância para imaginário social de inúmeras gerações, e sua representação em uma Era é colocada agora em novo contexto. A sociedade do consumo se apropria do automóvel, mas em que condições políticas? A cultura do efêmero elege a novidade como propulsora do sistema, mas de que forma através do automóvel?

O carro como objeto de consumo é muito mais significativo do que qualquer outro objeto em todo o século XX. O carro o é, pois foi capaz de atravessar todo um período sendo artigo principal e adentrar este novo tempo se adequando às novas regras, aos novos processos, e mais ainda instrumentalizado como força de consumo. O imaterial trabalhado, ou seja, a simbologia acerca do mito que encerra o automóvel é a marca principal deste tempo, e objeto de nossa pesquisa. Trabalharemos de que forma o objeto e seu significado se confundem na sociedade do consumo, como esta confusão estabelece uma dependência essencial para o funcionamento do sistema.

Um estudo semiológico do consumo é pertinente em uma época onde todas as teorias baseadas nos modelos conceituais pertinentes a modernidade representam uma inovação estrutural e mais do que isso, talvez uma das chances de se reconhecer o fenômeno pós-moderno a partir dele mesmo. É o que faz Baudrillard ao trabalhar o mundo da cultura a partir do objeto, e refaremos aqui sobre o ícone automóvel, estudando-o em suas dupla relevância: instrumento e signo social.

Featherstone reitera essa afirmação, enxergando o avanço que significa a metodologia de Baudrillard, que analisa a hipertrofia cultural a partir de uma explosão produtiva da informação tal como uma indústria, veiculada pela mídia e suprimindo o significado em nome de um mundo simulacional.

 

" Para Baudrillard, toda a tentativa de discutir as massas viscosas em termos de normatividade, ou de análise de classes a maneira Bourdieu, está fadada ao fracasso por ser uma forma de análise pertencente ao estágio anterior ao sistema, agora ultrapassado." ( FEATHERSTONE, 1994 .p.10)

 

É exatamente essa a proposta neste trabalho, estudar o consumismo enquanto ideologia, e a Pós-Modernidade enquanto pano de fundo e suporte no plano das idéias na atualidade, a partir de conceitos que reconheçam a Pós-Modernidade em suas particularidades, mas que de forma nenhuma deixem velhos conceitos e antagonismos fugirem a nossa vista, como uma miopia que unidimensionaliza o indivíduo moderno só deixando-lhe a melancolia de uma massa instrumentalizada despida de ação.

A publicidade e seu papel essencial na sociedade do consumo, sua estratégia de convencimento a partir do objeto automóvel, a questão da evolução tecnológica, os modelos, as séries, todas estas questões a serem levantadas nesse trabalho tem como objetivo fazer um estudo de reconhecimento da cultura do efêmero, e de uma estrutura maior, uma lógica capitalista, que se reorganiza tentando fugir de suas próprias armadilhas, de um sistema fadado a disputa mortal, à sua autodestruição.

Para mais, um rascunho histórico desta transformação estrutural do capitalismo segue este trabalho na tentativa de tentar traçar todo o percurso do capitalismo industrial ao capitalismo industrial avançado ou pós-industrial, carregando como fio condutor, de uma ponta à outra do processo, o automóvel.

David Harvey sintetiza todo este processo de reestruturação do capitalismo da seguinte forma:

 

" A acumulação flexível foi acompanhada na ponta do consumo, portanto, por uma atenção muito maior às modas fugazes e pela mobilização de todos os artifícios de indução de necessidades e de transformação cultural que isso implica. A estética relativamente estável do modernismo fordista cedeu lugar a todo o fermento, instabilidade e qualidades fugidias de uma estética pós-moderna que celebra a diferença, a efemeridade, o espetáculo, a moda e a mercadificação de formas culturais" ( HARVEY, 1989. p. 148)

 

O automóvel em todo século XX foi praticamente instrumento principal das empresas capitalistas, essencial por sua vez na acumulação e exploração dos trabalhadores. E hoje sustenta um universo de atividades paralelas, todas elas ligadas a indústria automobilística e ao consumo de automóveis.

  

 

 

Capítulo I

- Uma breve análise das bases da ideologia do consumo -

 

 

O consumo para a sociedade industrial tem papel determinante, uma vez que toda a dinâmica do capitalismo hoje está em função do consumo rotinizado, do consumo instrumentalizado enquanto parte do processo de acumulação de capital. Parafraseando novamente Marcuse, dizemos que há muito tempo o processo de alienação rompeu os limites da fábrica, a alienação faz parte do mercado, do processo de compra, da indução dos desejos, das necessidades6. Há muito tempo que a sociedade ocidental vem assistindo a um suposto encontro dos pólos opostos, e vem se tornando unidimensional, composta por indivíduos unidimensionais, encobrindo possíveis antagonismos, contradições inatas ao capitalismo em nome de uma padronização dos instintos, de um controle dos anseios humanos, em nome de um "senso de rebanho" extremamente visível em uma cultura massificada, mas ininteligível por ela mesma.

O consumo pode ser visto em toda e qualquer sociedade, porém ligá-lo única e exclusivamente ao capitalismo é um erro. Em outras sociedades os indivíduos já consumiam, seja a produção artesanal, seja a produção oriunda do trabalho escravo na Grécia pré-representativa,  por exemplo. O consumo enquanto ação, ação esta de consumir bens e serviços produzidos é historicamente reconhecível somente nos últimos séculos. Enquanto estimulador da razão de produção ou orientador dos meios de produção e de comercialização para resposta às necessidades multiformes, artificiais e supérfluas, é característico somente das sociedades capitalistas modernas. Ou até, sob uma ótica marxista, enxergá-lo como fruto de uma indução para a realização da mais-valia7 é somente possível em sociedades industriais. Uma vez que a lógica do capitalismo é a exploração da mão-de-obra e acumulação de capital, o consumo é a etapa do processo de acumulação que se contrapõe diametralmente a produção industrial, mas a regula pela demanda, pela racionalização das necessidades dos consumidores.

Sendo assim, é lícito para o capitalismo que diferentes formas de execução tivessem sido adequadas às estratégias burguesas de produção. Desde a revolução industrial, vemos a produção cada vez mais tecnificada, quantificada. Do taylorismo a acumulação flexível o capitalista estratificou a produção, desvencilhou o operário do produto total através das táticas de gerenciamento científico onde o saber gera o controle. O saber foi retirado das mãos do operário, ou melhor foi compartimentalizado, fazendo com que o trabalhador perdesse a noção do todo, a noção de controle e de poder. Numa das claras leituras foulcaultianas sobre a história humana8, o poder foi sempre exercitado e controlado por quem sabe, a história do capitalismo foi escrita por quem sabia da totalidade da produção, e não por quem era explorado pelas mais-valias.

A verdade é que no caminho traçado do taylorismo até os dias de hoje, o consumo induzido e generalizado dos mercados estimulou a busca de várias áreas do globo para exploração do trabalho e desejo do lucro monetário (uma vez que esta seria a lógica do capitalismo, como foi dito há pouco), onde aos poucos a própria estrutura política e econômica dos países que acomodavam tais mercados foram obrigadas a se adaptar às constantes mudanças do capitalismo e da produção. Numa referência a Lipietz, Harvey comenta sobre estes formatos particulares de produção e reprodução do capitalismo em outras áreas do globo, de forma que um sistema de produção capitalista nessas áreas e condições, poderia existir, o problema seria a viabilidade ser alcançada a partir da modulação do comportamento de todos os tipos de indivíduos, de todas as classes sociais, para a manutenção do regime de acumulação9.

Com certeza a adaptação de diferentes culturas aos modelos impostos de acumulação ministrados pelo capitalismo é um processo complexo que utiliza muitos recursos sobretudo para lidar diretamente com o imaginário social, com a população, uma vez que estes são os consumidores em potencial. Uma cultura massificada é o projeto e o fim último dos capitalistas que gerenciam a produção e transformam política e economicamente os países celeiros de mercado consumidor, antes de manipularem ideologicamente essa população no que diz respeito as suas necessidades e desejos. A mídia, a propaganda, expressamente a televisiva, a Internet, são mecanismos que reproduzem a ideologia da sociedade industrial em qualquer território.

O próprio fordismo, se quisermos trabalhar cronologicamente, após o taylorismo, mais do que a simples introdução da linha de montagem (da esteira especificamente), Henry Ford tinha o objetivo de dar aos trabalhadores renda e tempo suficiente para o lazer e por conseguinte o consumo da produção industrial (HARVEY. 1989, p.121-123), um corporativismo estatal que foi sonhado para um novo tipo de sociedade pelo fordismo. Segundo o autor, isto presume que a fábrica, a produção, ou melhor o capitalista tivesse controle sobre o quê e como os trabalhadores gastariam seu dinheiro e lazer. Ou seja, desde sempre o capitalismo procurou pelo controle dos anseios e necessidades humanas além da fábrica, das necessidades que estão muito além do limite biológico e que colocam os indivíduos como singulares, o capitalismo buscava padronizar as diferenças culturais, as particularidades sociais que só são visíveis no campo da representação e do imaginário social. A ética utilitarista e racional do capitalismo levado aos limites do psicologismo social, descobrindo a fórmula para criar fantasmas, para manipular representações, para criar mitos.

Explicitemo-nos com minúcias, mais adiante, acerca deste aforismo: Criar mitos.

Tudo que foi colocado aqui demostra claramente que o capitalismo utiliza todas as formas possíveis para tentar se manter diante das crises que lhe são naturais. Por mais que se concebam mudanças estruturais do taylorismo à acumulação flexível, estas só foram possíveis através de muita exploração de mão-de-obra, que custou a vida de milhares de trabalhadores (principalmente da indústria automobilística). Em nome da acumulação de capitais, o empresário tenta manter-se vivo na concorrência em um sistema onde a taxa de lucro tendencialmente cai. Como vemos, o que se tem hoje, é o auge de toda a dinâmica de concorrência do capitalismo utilizando o marketing e outras formas de coerção, principalmente na venda de automóveis.

O modo-de-produção capitalista leva adiante o processo irremediável de   "desencantamento do mundo10" reconhecível principalmente em toda e qualquer esfera do Ocidente.

O fordismo é a primeira estratégia de produção industrial, depois do taylorismo, nascida da necessidade de se ganhar da concorrência e tentar dominar o mercado desde já competitivo, a ser utilizada em todo o mundo industrializado. É certo que o mundo subdesenvolvido foi tragado pelos ideais de Henry Ford mais tarde, porém o fordismo deve ser levado em conta por ser muito mais do que um método de gerenciamento, e sim um projeto político, um projeto de nova sociedade. A astúcia de Ford estava em enxergar que a produção de massa gerava consumo de massa, e por conseguinte uma nova estética, uma nova psicologia, uma nova sociedade ( Harvey. 1989, p. 121 ).

O fordismo pedia um sistema político expansionista, de larga produção e protecionista isto é, o fascismo, ou o New Deal, pós 29, norte-americano. A ex-União soviética se utilizou do fordismo numa transição entre o Leninismo e o Stalinismo, mas como sua economia não era concorrencial, por se tratar de um Estado Socialista, não foi moldada, tal como os países capitalistas industriais, uma sociedade de consumo. Mais tarde as ditaduras latinas dos países de industrialização periférica. Ou seja, as instituições políticas sempre se adequaram às estratégias de produção dentro de áreas de influência. Assim, toda uma sociedade que se pauta em instituições (não só políticas) e representações, sofre com este embate ideológico que vem na mesma toada destas transformações políticas e econômicas.

A propaganda, a indução subliminar, a ideologia, giram em torno do problema: como se cria uma sociedade de consumidores ideais?

O fordismo carregou até 1973 uma falsa idéia da expansão eterna do pós-guerra. Como o próprio capitalismo em sua essência, coube ao fordismo carregar a semente de sua destruição através do massacre de culturas locais e através de um sistema vertical, hierárquico e linear de produção que não resistiria à crises do sistema, como a do petróleo em 1973. Ainda tendo de carregar consigo um sistema de seguridade social que só era rentável a Estados Keynesianos que mantinham um crescimento regular, mas que também gerava insatisfação e fortes tensões sociais na maioria dos países capitalistas.

A rápida substituição do fordismo por modelos mais flexíveis era inevitável, mais do que isso, era necessário.

Toda uma sociedade de consumidores era orientada praticamente no mesmo ritmo de produção das fábricas. Por exemplo, o Brasil, onde o fordismo apareceu de forma tardia, e como nos outros países nestas condições, não tinha muitos recursos para manter um sistema de seguridade social rigoroso, além de ter uma fraquíssima composição sindical. O Brasil vivia politicamente uma ditadura onde os ideais desenvolvimentistas estavam explícitos em todos os veículos de comunicação, como o ideal do Brasil potência,  a exaltação do mito do aparelho estatal como realização da nacionalidade, etc.

Podemos dizer, então que nós começamos a viver a realidade de uma cultura de massa, os efeitos de uma indústria cultural, antes até de termos um veículo de comunicação que integrasse todo o país. Mesmo assim passamos a contracenar com um imaginário de massa, com desejos de massa, o carro, o sonho americano de liberdade, outras formas de fantasia que nossa moderna tradição estava sendo obrigada  a hospedar.

Renato Ortiz chega a concluir que assumimos meio cegamente o ideal da modernização, em busca de uma nacionalidade, de uma integração territorial e principalmente cultural, que não havia sido adquirida em nenhum momento de nossa história, e que acabava também por ser de extrema necessidade para a construção de uma cultura de massa. Por isso o chamado silêncio acerca da questão da industria cultural nesse período. A produção acadêmica estava espremida pela censura ditatorial, e toda e qualquer produção intelectual acabava por se referir direta ou indiretamente aos ditames da bipolaridade mundial. O ideal gramisciano estava muito mais presente que o questionamento acerca da cultura de massa, por exemplo. Deixando a cabo da racionalização capitalista a integração nacional, a partir de um processo que não deixa de ser o de aculturação11.

Vejamos o que Ortiz fala da composição da cultura de massa:

 

"... a padronização promovida por e através de produtos culturais só é possível por que repousa num conjunto de mudanças sociais que estendem as fronteiras da racionalidade capitalista para a sociedade como um todo. Na verdade todo o raciocínio de Adorno e Marcuse procura mostrar que na sociedade moderna os espaços individualizados são invadidos por esta racionalidade e integrados num mesmo sistema ( 1988, p. 49 )."

 

Observemos que Ortiz fala da invasão de espaços individualizados pela racionalidade capitalista, espaços que contém as nossas necessidades, nossas representações, nossos anseios. Estes, pois, são invadidos e racionalizados, controlados.

Sem a intenção de se aprofundar muito no psicologismo da questão, pelo menos por enquanto, ressaltemos a constituição de representações no consciente coletivo. Como ícones absorvidos por culturas diferentes, em nome de uma condução consumista, conseguem se infiltrar no etéreo das íntimas relações humanas? E como um ícone é "construído" e qual a função do mito para o sistema de acumulação de capital?

Para finalizar este breve capítulo sobre a formação da ideologia do consumo e sobre como ela atua enquanto instrumento na execução da lógica capitalista de exploração de mão-de-obra e acumulação de capital, falemos um pouco da mítica acerca do automóvel no século XX. Talvez  em uma análise deste objeto de consumo estejam algumas das respostas para as questões propositadamente levantadas neste capítulo. A entrada das formas de organização do trabalho e produção, como o fordismo por exemplo, nos países capitalistas, celeiros de mercados consumidores de massa, foram oriundas da necessidade dos Estados Nacionais se comprometerem com um rentável ramo que movimenta cerca de 20% do PIB dos grandes países capitalistas12: A industria automobilística.

O próprio fordismo nasceu em uma indústria automobilística. E tamanha a capacidade de Henry Ford de arrasar a concorrência através da produção de massa a um relativo alto custo de mão-de-obra, levou em tempo recorde a produção artesanal da área à extinção. Como foi dito anteriormente, o fordismo muito mais do que um consumo de massa, necessitava de uma mentalidade de massa, sendo aproveitado enquanto projeto político.

O automóvel, concluímos, no século XX se confunde com a história da cultura de massa, e é alvo incessante da ideologia do consumo mesmo não sendo mais um ramo de expansão crescente para o capitalista. Os países, em especial do terceiro mundo, estão próximos da saturação, enquanto países desenvolvidos já apresentam uma involução na produção automobilística.

Mesmo mais tarde com o toyotismo, uma forma de adaptação das estratégias de produção, tendo em vista as crises do petróleo e uma reação dura à modernidade na década de 70, o automóvel continua como ícone, muito mais que para uma geração, mas para uma era. O século XX, tão rápido e estreito quanto pensou Hobsbawn, mas igualmente inflamável, executou praticamente boa parte do que os séculos anteriores pensaram.

Vivemos as contradições de um modo-de-produção fadado às crises de superprodução, e cada vez mais a rede ideológica se expande comprimindo o homem moderno em um universo sem horizontes, a massificação levada ao extremo. O extremo do pensamento único, sem revés, sem  opressão explícita, simplesmente uma interdição psíquica.

No auge desta asfixia de expectativas, em meio a bombardeios de teóricos iconoclastas que rompem com categoricamente tudo13, o homem moderno se agarra em sonhos e mitos como o do automóvel. O automóvel está ligado ao sonho de liberdade, de velocidade, de auto-superação, o homem necessita de algo que seja capaz de romper com os limites definidos de espaço e tempo, e se realizar através de uma sobrevida mediada a cada novidade do mercado.

Esta análise da ideologia do consumo se propõe a investigar através do mito do automóvel, mais especificamente ainda, o trabalho de toda a máquina persuasiva, como mídia, propaganda, toda a maquinaria de execução "espiritual" da lógica do capitalismo moderno.

  

 

 

 

Capítulo II

- A simbologia do automóvel no século XX -

 

 

Pensar o que representa o automóvel para o século XX é pensar na ideologia do consumo de massa. Não há objeto que tenha sido mais alvo da mídia, das agências de marketing em todo o século XX, do que o automóvel (o carro).

E tentar imaginar como o automóvel adquiriu tanto status no sistema, significa esmiuçar toda a proposta, ou melhor, estratégia capitalista de consumo. Segundo Gounet a fabricação de um automóvel, um objeto de alta tecnologia e organização, acarreta a produção de quase 20 mil peças, fora a produção indireta de acessórios e produtos relacionados a este. Um sistema de serviços e organismos, todos ligados ao automobilismo e ao veículo em si, é gerado e se sustenta a partir do imaginário que se tem do mito automóvel.

Praticamente, o volume de dinheiro, serviços ligados ( marketing, crédito, etc.), empregos direta e indiretamente criados são capazes de movimentar monetariamente de 15 a 20% tanto do PIB, quanto do comércio externo. Conclui-se que foi rentável para as diversas economias do mundo, portanto necessário, abraçarem a indústria automobilística como propulsora de seu crescimento, assim como alimentar este verdadeiro símbolo da liberdade e da modernidade, como veremos a seguir.

Como foi dito no capítulo anterior, o gerenciamento científico da produção capitalista, o fordismo e o toyotismo por exemplo, nasceram na indústria automobilística e carregaram junto com seu produto final toda a ideologia do sistema para os consumidores, os cidadãos modernos. À semelhança efeito de uma epidemia, o mundo foi contaminado pelo ideal do automóvel, fazendo com que as rodovias rabiscassem os mapas urbanos de todos os países, e que estes praticamente se movimentassem sobre rodas, gerando a obsolescência das baratas e tradicionais ferrovias do século XIX.

Porém é de suma importância para o trabalho, que destrinchemos todo o processo de persuasão que envolve a inserção do automóvel enquanto objeto de consumo no mercado, passando pela propaganda e outros mecanismos que, a serviço de uma lógica do consumo, atuam diretamente no imaginário social.

Baudrillard é enfático ao afirmar que os objetos são a materialização das relações humanas, e que tais exercem para o homem uma função indissociável de receptáculo e incitador de desejos, frustrações, exercendo com o seu possessor uma recíproca relação de significações, sendo até possível avaliar a íntima relação simbólica do ser humano com os objetos como uma falência das relações humanas14.

Para o consumo na sociedade pós-moderna, os objetos são a verdadeira mola propulsora dos instintos humanos, seja de qualquer natureza. E segue-se aí, o importante fato de que os objetos atuais estão gradativamente perdendo o significado que ainda tem os objetos antigos para os indivíduos (uma vez que estes para Baudrillard tem toda uma simbologia garantida tanto pela sua "longevidade" como sua origem geralmente artesanal, coisa extinta nos objetos atuais15 ), graças a produção em série, graças a redução da vida útil dos objetos industrializados, graças a toda uma manobra científica que mantém a massa sempre em busca de significações que os objetos atuais genericamente não possuem. A busca de uma personalização, de uma origem, de uma identidade. A medida que os objetos se rotinizam e multiplicam em série, o homem moderno se perde e se frustra em busca da autenticidade nos objetos, que este mesmo, massificado, já não tem.

Partindo desta eterna perseguição do ser humano à sua completude distribuída nos objetos, como se dá a veiculação de ícones como o automóvel, por exemplo, praticamente uma paixão do indivíduo moderno?

Segundo este mesmo autor, o carro em sua totalidade se contrapõe ao sistema doméstico e sua ambiência. A esteticidade e a disposição harmônica dos objetos no ambiente doméstico se constitui como um pólo antagônico ao carro e toda sua dinâmica (embora em menor escala ) dos objetos, principalmente a velocidade, a necessidade de se movimentar e o sonho de estar livre. A privação e a interação até com os membros da família é suplantada pelo deleite do poderio e da individualidade. O carro é mais do que um meio de transporte para o indivíduo, é uma declaração de status e auto-suficiência dentro do grupo16.

A chamada euforia dinâmica, segundo Baudrillard, está sustentada no invólucro que o automóvel se constitui da intimidade sem restrições, mas com as facilidades que a cotidianidade caseira oferece. Numa projeção hiperbólica o autor compara a sensação proporcionada pelo automóvel à sensação imaginada pelo homem em sua morte, a eternidade, a onipotência e a supremacia individual.

Tudo isto está presente no imaginário do cidadão moderno sobre o automóvel, que é incitado pela mídia, e abraçado em forma de lucro monetário pelos capitalistas. Como se pode observar, é algo presente nas representações coletivas de uma era, ou melhor, da civilização ocidental como um todo.

É lícito observar que todo o imaginário prescrito envolve a praticidade, a racionalização do comando, da posse, em resposta e satisfação a um eu narcísico moldado pela cultura grega e exacerbado por uma cultura consumista e carente17.

Toda a estratégia publicitária sobre o automóvel se orienta pela incitação deste eu narcísico ( assim como todo tipo de publicidade ), e se sustenta na cognição objeto de consumo/objeto erótico18. Noções como poderio e comando podem ser comparados a atividade do falo na relação sexual. Vemos então a publicidade explorar toda essa questão através dos comerciais e outras formas de comunicação de massa, assim também explora normas sociais de gênero, como o automóvel enquanto objeto prioritariamente masculino, e o ambiente doméstico enquanto feminino.

Uma outra questão a ser levantada, é a da evolução tecnológica. Pensemos antes que vivemos em um período onde a valorização do conteúdo está sendo suprimida cada vez mais pela agradabilidade da estética, assim como há a valorização do enunciado, entrando no contexto o discurso publicitário e suas formas de expressão, em detrimento do conteúdo.

Dessa forma, a serialização é o que caracteriza a produção em massa, e é normalmente revitalizada com inovações que constituem a introdução de novos modelos a serem comercializados, e trabalhados pela mídia para promoverem uma nova onda de consumo,  e assim por diante.

Só que vivemos sob a ditadura da forma, do enunciado e nestas condições podemos dizer que cada vez mais a diferença que faz nascer o modelo, se resume a uma diferença mínima, acessória, e eu diria de certo modo irrisória, mas que é o estopim de uma nova onda de consumo serial, em busca da originalidade do modelo.

Assim o consumo automobilístico se resume a cada inovação em termos de design e aerodinâmica, em um aumento de alguns cavalos de potência ou até na introdução do ar-condicionado a preço de fábrica... Nada se constitui sobre uma evolução tecnológica vertical, e sim de transformações visuais e acessórias que alimentam única e exclusivamente o imaginário de massa .

Essa busca incessante ao objeto-modelo, se confunde com uma necessidade de personalização19, uma busca à individualidade que o homem moderno perdeu com a serialização dos objetos, algo de sua identidade própria ou até social está perdida na distribuição em série dos objetos, que só através da perseguição destes será de alguma forma suprida. A busca, que a falsa noção de escolha nos vende. A escolha nada mais é que a falsa noção de liberdade dos indivíduos no capitalismo, uma liberdade que ora se limita pela disponibilidade financeira dos consumidores, ora pelo leque de opções de série que o objeto de consumo nos permite.

O automóvel, ou melhor a ideologia que carrega consigo o automóvel, tem estes contornos utilitaristas que lidam muito mais com o psicológico do que qualquer outra esfera de atuação humana, é o que faz deste objeto um mito. Trabalhadas assim de maneira científica ganham contornos de maquiavelismo que o próprio Maquiavel se sentiria constrangido, porém se torna facilmente reconhecível sem a capa alienadora, nas ruas rasgadas pelos modelos GLs, GLSs, nos motores Zetec Rocam, 2.0, 2.8, que transitam tanto nossa realidade quanto nosso imaginário.

É o irreal que na Pós-Modernidade toma o formato da realidade.

 

 

Capítulo III

- A  publicidade para ideologia do consumo -

 

 

Diante de toda a discussão colocada anteriormente, desde as origens do consumo de massa até o papel da industria automobilística engendrando todo esse processo no século XX, cabe agora falar um pouco de como a publicidade se encarrega de potencializar a compra, trabalhando diretamente com o imaginário da massa. Além disso veremos que essa massa, não é entendida como um todo amorfo, e sim como uma miríade de grupos e tribos, estudados minuciosamente a partir das pesquisas de mercado e bombardeados pela publicidade direcionada, que também é consumida de forma velada, imperceptível aos olhos do consumidor. A ideologia do consumo trabalha basicamente em duas frentes: a  objetiva e a subjetiva, esta última responsável pela publicidade.

É lícito observar que o sistema capitalista de produção era antes enfocado no processo de produção de massa, onde a preocupação principal estava no excedente maciço. O que se produzia e saía das fábricas era imposto de qualquer forma aos consumidores vide um processo ideológico de construção de uma sociedade de massa, uma sociedade de consumo, tal como pensava Henry Ford.

Embora as duas extremidades ( produção / consumo ) façam parte do processo de produção capitalista, perceptíveis aos olhos de Karl Marx desde o século XIX, o início do século XX foi marcado por um investimento implacável nos meios de produção, forças produtivas sendo aperfeiçoadas com a evolução das máquinas, e também as relações de produção pelas novas políticas de gerenciamento científico. Os produtos vindo das fábricas eram disponibilizados aos novos indivíduos moldados por uma ideologia de crescimento industrial, muitas vezes nacionalista e que levava ao consumo padronizado por parte dos cidadãos ( agora consumidores ), principalmente no mercado interno.

Porém como é visto desde sua origem, o capitalismo é o sistema das crises de superprodução, em suas diferentes formas. Sustentado na concorrência, o capitalista estabelece verdadeiras cruzadas em busca do lucro monetário agravado pela tendência estrutural de queda desta mesma taxa de lucro. Mercados foram invadidos e o imperialismo levou o sistema a duas guerras mundiais e a duas crises do petróleo.

Os capitalistas, por sua vez castigados pela disputa acirrada e tendo cada vez mais que superar as crises naturais do sistema, necessitam agora regular melhor os investimentos, estudando, ou melhor, dissecando os até então consumidores de massa literalmente bombardeados por uma política de consumo que muitas vezes não se preocupava em ocultar seu lado repressor.

Crescem pois os investimentos em atividades improdutivas, que seriam marketing, propaganda, publicidade para cercar a dita massa de consumidores. É mister, agora, conhecer este consumidor, trabalhando os grupos e as particularidades de gênero, uma vez que o capital tem de ser bem investido, e a produção feita sob medida para estes indivíduos.

Como vemos, o investimento do capitalista está centrado na etapa diametralmente oposta à produção da fábrica embora pertença ao mesmo processo: o consumo.

Segundo Baudrillard o objeto de consumo pode ser considerado um alibi, a propaganda também o é, como segundo produto de consumo e manifestação de uma cultura de massa20.

Deve-se entender a respeito da propaganda dos objetos na pós-modernidade que ela é representante de um conjunto social que se adapta ao indivíduo. O processo se inverteu, antes era a sociedade de massa que se adequava ao processo de produção, agora a publicidade vende a idéia do mundo globalizado adaptado a lógica individual. O conforto, o bem-estar, a comodidade são axiomas recentes e que interagem com o indivíduo na falsa idéia de servidão, da personalização, do carro feito sob medida.

Antes de reconhecer esta mudança, é importantíssimo caracterizá-la enquanto um processo puramente ideológico e que de maneira nenhuma melhorou a vida do indivíduo, pois se de alguma forma a publicidade vende de maneira subjetiva a imagem dessa falsa adaptação da ordem social ao indivíduo, este paga de uma maneira bem objetiva, adequando-se a regras e normas sociais bem diretas, encaminhadas pela lógica do mercado em função de um universo suspenso pelo imaginário do consumidor.

Para Gérard Lagneau a publicidade é adotada como lubrificante da economia e se manifesta sob a forma do fazer-valer21. Embora correta a afirmação, percebo que essa definição é um pouco simplista demais para a complexa precisão da publicidade nos dias de hoje na sociedade de consumo.

Justifico esta afirmação pelo fato de que a propaganda é por si só também objeto de consumo e estabelece com o consumidor um equívoco vital que propulsiona todo o mecanismo de busca incessante da mercadoria, busca essa explicada no capítulo anterior.

A confusão ou equívoco é alimentado pela ideologia da sociedade pós-moderna  onde o poder pelo gestual é substituído pelo controle manual, onde a comodidade, o conforto são bandeiras que tentam passar o indicativo do consumidor como agente principal do mundo global, e portanto objetivo principal das mudanças e evolução, que a tecnologia pode trazer para este.

Não. O indivíduo, ou melhor, o consumidor é o objeto principal sim, mas de uma forte produção ideológica que visa apreender todas as necessidades humanas pelos objetos de consumo e por conseguinte controlar este mesmo personagem. Como através de sua atividade limitada de escolha, por exemplo, onde o consumidor inocentemente considera como uma forma de liberdade. O consumidor é uma peça, ou até  um instrumento, hoje nas mãos do capitalista e do processo de produção.

O equívoco citado anteriormente, que possibilita a crença e o consumo da propaganda, é considerar este veículo (a publicidade ) como uma forma de valorizar a si próprio enquanto consumidor. Este não acredita necessariamente na propaganda, mas de certa forma sente-se lisonjeado, ou melhor, sente-se importante, central, diante do convite a compra ou ao produto. O consumidor é fisgado não pelo caráter de veracidade da propaganda ou da qualidade do produto, mas pela satisfação narcísica da necessidade de se considerar autêntico, importante, de se considerar sujeito.

Cabe como comprovação desse mecanismo, frases propagandísticas como "feito sob medida para você", "numa concessionária perto de você", e outras que servem para qualquer produto, mas que executam o mesmo fim: massagear o ego do indivíduo moderno.

Assim a publicidade se embrenha pelo etéreo das relações humanas. Baudrillard metaforiza este mecanismo muito bem através da lógica do Papai Noel, em quem muitas das vezes não se acredita, mas se considera22.

De maneira mais abrangente a publicidade procura se antecipar as reações de todos os indivíduos de um grupo a ser alcançado, uma vez que cada indivíduo tem sua maneira de ler a propaganda e de receber a mensagem. Dessa forma se apreende as características permanentes deste grupo, absorvendo a todos como uma rede, todos no grupo se identificam com o proposto. Resistências são encontradas, mas nunca contra a ideologia em si, sempre contra a abordagem da propaganda. Como um estranhamento que faz o grupo refugar. Cabe a propaganda minar essa resistência:

 

" Existem, assim, em cada grupo social suficientemente automizado e para cada tipo de consumo, autoridades ( taste leaders ) que caucionam nosso bem gosto. Falar em "mass media" é portanto iludir-se: o bombardeio contínuo das mensagens não incide sobre as vítimas desarmadas e isoladas; a publicidade investe na verdade contra grupos sociais, isto é, contra seres coletivos e estruturados, protegidos e informados pelo que poderíamos qualificar de zeladores ou porteiros culturais ( gate keepers)." ( LAGNEAU, Gérard. 1981, p.18 )

 

Mais do que claro o fato de que existe uma resistência em cada grupo visado pelo marketing de um objeto, e que trabalhar sobre o conceito de mass media seja um equívoco, é importante salientar que as formas pós-modernas de produção e consumo não podem ser consideradas apenas como soluções para as últimas fortes crises que o capitalismo vem sofrendo. O toyotismo foi uma maneira de se tentar superar os entraves do fordismo, ao contrário o capitalismo sucumbiria em outra crise como a de 1973, e assim  também ocorreu com todos os mecanismos de acumulação flexível. Porém tais formas já levam consigo problemas inatos que os transformam em propulsores de desigualdades internas e de insustentabilidades futuras. As adequações que os métodos de produção passam em função dos interesses da burguesia industrial são a prova mais contundente da irregularidade do sistema como modo de produção. Hoje a produção em série, o consumo direcionado se constitui pela necessidade dos capitalistas de fazer valer seus produtos em um mercado cada vez menor e mais competitivo. As artimanhas e o aperfeiçoamento das estratégias de marketing só demonstram um acirramento fortíssimo da concorrência dos produtores para mercados restritos diante de toda a desproporção de séries e modelos disponíveis que precisam ser rotinizados, e ter uma vida útil controlada (mínima). Dessa forma esquizofrênica, que o mercado se agilizou, que a propaganda embaçou os olhos dos cidadãos (incluídos aí os trabalhadores, toda a massa potencial de consumo) e segue frenética incansável para o novo e sempre vespertino colapso.

A publicidade e seu caráter apelativo atual é o significado, é a alma que se busca no objeto serial e nunca se encontra. O imaginário é consumido pela busca incansável de si pelo produto, da personalização, da autenticidade. E eis então o caráter conotativo que só a propaganda tem e a oferece de forma solícita diante do consumidor.

Como circula no âmbito da subjetividade a propaganda tem por objetivo facilitar a veiculação de valores e normas culturais que sustentam a sociedade ao se reproduzirem na mídia, e produzem ao se pautar no consenso e no unânime.

A particularidade em toda publicidade está na dosagem exata do despertar do indivíduo diante do produto, o despertar do desejo, da necessidade, pois este despertar causa a busca que não se suprime totalmente com a compra, esta apenas acalenta e se faz passível diante de um novo bombardeio de incitações.

A minúcia acerca do caráter sugestivo e incitante da publicidade é calculada diante das possibilidades de controle e satisfação do próprio objeto, isto de grupo para grupo de consumidores. Esse processo de estímulo e desestímulo, mobilização e desmobilização é o fator de prova de como a mídia em suas diversas expressões condiciona e controla, pois trabalhar com os desejos e incitações é manobrar no terreno perigoso do irracional. Toda incitação acerca de algo para o indivíduo gera uma ação, e esta ação é que deve ter rumo certo, deve ter destino, pois ações desproporcionais poderiam gerar prejuízos para todo o sistema. Da mesma forma que pode gerar uma ação em direção ao consumo, pode-se gerar outros tipos de ações, através da revolta, etc. Vê-se então o caráter ideológico da propaganda e mais largamente da publicidade de controle superestrutural, e por conseguinte controle social.

Para finalizar, essa larga definição acerca da publicidade na ideologia do consumo serve e é apropriada como objetivo de qualquer produtor capitalista. A industria automobilística como grande movimentadora de capitais foi uma das primeiras a celebrar a comunhão necessária em tempos de crise com a publicidade. Segundo Lagneau, os empresários, antes céticos, conscientizaram-se de que vender e produzir são objetivos de igual importância, e que em um mercado altamente competitivo o investimento em publicidade pode garantir o domínio e a liderança na concorrência, desde que se conheça bem a natureza da demanda e o volume da oferta23.

A propaganda de automóvel utiliza-se de todos os veículos da mídia ( televisiva, radiofônica, etc. ) e através de patrocínios milionários se mantém onipresente na vida cotidiana. Porém, todo o conteúdo subliminar que cerca o produto durante a propaganda é imperceptível aos olhos comuns embora de maneira implacável se engesse no inconsciente.

Antes do jogo de futebol, antes do filme no horário nobre, homeopaticamente nos intervalos do Jornal Nacional... e a família reunida recebe aquele conteúdo mesmo que nem esteja prestando muito a atenção, isso não é importante no momento... "Peugeot: Emoção em movimento". Esta frase já é suficiente para que todo o imaginário humano se projete através de associações, e o objetivo seja alcançado.

A publicidade muitas das vezes comparada a uma magia (uma metáfora, claro), não se conserva muito neste rótulo se percebermos nela o imperativo racional do capitalista, o cálculo sustentando o subjetivo. A magia, porém, já ganhou o caráter de um adjetivo, tamanha é a significação de sua natureza etérea, enquanto a publicidade é cálculo, dedução e controle não sendo capaz de sustentar o invólucro etéreo que só verdadeiras expressões de arte, como a alquimia, podem ter.

 

 

 

 

Conclusão:

- Considerações finais -

 

Pretende-se com esta conclusão não apenas encerrar uma discussão, mas suscitar várias questões. Além disso devemos ter claro o caráter ativo do consumo na pós-modernidade.

E consumo, como se entende naturalmente, gera, também, uma saturação. Sob esta lógica consumista nós, consumidores, chegaremos um dia a saturação? 

Como se pode dar fim, ou situar um limite ao consumo atual em que a proposta do consumo serial nasceu de empresas concorrentes que disputam um mercado mínimo de consumidores cada vez menos providos de bens líquidos (dinheiro)?

Chegamos a este capítulo com a certeza que este sistema de manipulação de símbolos, que é o consumo pós-moderno ou ideal de consumo, está a serviço de uma lógica burguesa de acumulação de capital e é mais um instrumento do capitalista no processo de produção. Sendo assim, o próprio capitalismo tardio ou avançado, seja como for entendido, é pautado no ideal do consumo que manipula o imaginário, modulando as necessidades humanas muito além do simples limite da saturação.

Este controle ou manipulação é fruto de uma tentativa de se superar a concorrência avassaladora entre as empresas, que se viram obrigadas a investir em atividades estéreis como propaganda e publicidade em geral, para poderem conquistar os  mercados em disputa. Então, o passe de mágica. Sustentado por uma carência do indivíduo moderno em relação a sua condição de sujeito na vida cotidiana, a propaganda vira objeto de consumo, é absorvida, tragada pelo imaginário do homem comum que não se sacia, pelo contrário, vicia-se. Como o acalanto na infância, o homem moderno procura os objetos como parte de uma identidade que é vendida, pela propaganda, de maneira homeopática, em cada novidade de séries.

Este pequeno adendo tenta mostrar como nossa vida cotidiana está intimamente arrolada no processo de acumulação capitalista e como nossos pequenos atos sofrem a influência de um instrumento, o ideal de consumo. Este é superestrutural e tenta homogeneizar diferenças de classe, nivelando toda uma disposição hierárquica de classe em nome de uma nova definição de grupo: consumidor. Além disso, este adendo tenta explicar uma das perguntas propostas inicialmente em todo o trabalho e expressadas neste capítulo. É possível dar um fim a este processo?

A ação do consumo embora seja compreendida como material aos olhos dos consumidores, se dá de maneira irreal, sob a égide do imaginário. E por se tratar o consumo de algo irreal, que não se define e por muito menos se delimita, este, por sua vez, não tem fim. Nasce de uma apropriação do imaginário de grupos e se reproduz sobre uma ausência, sobre uma necessidade de adquirir particularidades daquilo que foi apropriado, e é aí que a lógica do capital se instala. O consumo então, não tem fim.

Explicitemos melhor: o consumo de automóveis, o modelo de apoio deste trabalho, vimos como nasceu a indústria automobilística e como o capital se apropriou de um objeto transformando-o em ícone, em símbolo, e a partir daí executou sua lógica de produção em diversos países do mundo, mesmo atropelando idiossincrasias culturais.

Então, quando digo que o consumo (como instrumento de apropriação do imaginário no capitalismo) é irrefreável, quero dizer, que por mais automóveis que se produzam, se comprem, ou se vendam a famílias inteiras que sempre sonharam em ter um automóvel, antes mesmo de ter uma casa própria, jamais serão saciadas todas as categorias de necessidades irreais, ou seja do imaginário, que vem junto com o produto, principalmente alimentadas pela propaganda.

Um comercial de automóveis exibido atualmente na TV aberta, embora sendo uma brincadeira publicitária, exemplifica claramente como se comporta o indivíduo diante do produto e sua relação com o imaginário. O automóvel é o Peugeot 206, da empresa de mesmo nome, cuja propaganda se realiza da seguinte forma: Primeiro um jogador de futebol durante uma partida faz uma belíssima jogada, driblando vários adversários, até fazer um autêntico golaço, levantando a torcida e, consequentemente, nós consumidores em casa assistindo ao comercial. Quando comemora o gol, o jogador simula um motorista, com as mãos estendidas ao volante executando manobras e curvas, porém extasia-se tanto com a simulação que começa a se esquivar dos abraços e cumprimentos dos próprios companheiros de time, que estranham o olhar longínquo e realizado do jogador. Nesse momento a cena é cortada para a exibição do próprio veículo, em estradas e curvas, sendo guiado pelo ator que interpreta o próprio jogador, esta é a projeção do imaginário do próprio jogador após o gol, para dentro do automóvel expressando as mesmas emoções. Ao final desta cena (do automóvel e suas características), aparece o jogador com o estádio completamente vazio, horas mais tarde, executando as mesmas manobras de logo após o  gol. "Peugeot 206: quem põe as mãos não tira da cabeça". O comercial termina com o logotipo da empresa e o slogan: Peugeot: Emoção em movimento.

São tantas as mensagens subliminares que se apropriam da simbologia sobre o automóvel para tentar conquistar o consumidor, que a propaganda em si é mais recheada de componentes que vão assegurar a compra, do que o automóvel propriamente dito.

Comecemos pelo fato de se tratar de uma comparação com o futebol. Por se tratar do público brasileiro, em específico. A empresa publicitária se preocupou em associar um ícone ao outro, o automóvel ou carro ao futebol, garantindo então a procura de um público geral, uma vez que o carro é o modelo popular da empresa Peugeot.

Outra característica é a alusão do prazer, do êxtase causado pelo automóvel e oferecido pela propaganda, ao prazer do gol, momento inigualável e comumente comparado a outros tipos de  prazer, como o sexual, principalmente pelo público brasileiro.

Esta é a característica principal em propagandas de automóveis e a arma determinante: o prazer que só a direção de um carro proporciona, uma projeção explicitada nos capítulos anteriores. Neste comercial, esta característica foi explicitamente trabalhada pela empresa de marketing do produto. E são estas necessidades, estas emoções, que moveram o consumo do automóvel em todo século XX e vai mover ainda durante o século XXI, pois o automóvel em si pode até ser superado (projetando o descenso atual que vive a indústria automobilística), porém o prazer, o êxtase, que é vendido pela propaganda e procurado no produto pelo consumidor, esta necessidade nunca morre.

E é uma necessidade que vai ser instigada pela propaganda a cada novo modelo que surgir, o processo então é irrefreável, pois o indivíduo moderno acredita neste equívoco como acredita no Papai Noel, sofrendo as mais amargas feições que o processo ideológico de alienação da sociedade industrial pode provocar.

O consumo não é saciável, pois é uma busca imaterial, portanto não se delimita. O consumo também, não se freia, pois é incitado por empresas que concorrem pelo lucro monetário decrescente. Ativa-se em um novo desdobramento do modo-de-produção para sobreviver, ou seja, as empresas se auto-destroem, mas o ideal de consumo sobrevive pela batalha ideológica de empresas publicitárias em nome dos capitalistas concorrentes.

Como vemos o capitalismo, carrega consigo ingredientes suficientes para um novo colapso.

Em uma análise macro, o consumo é a etapa do processo de produção que o capitalista teve de aperfeiçoar, de acordo com as crises do sistema, e aperfeiçoou de tal maneira que conseguiu extrapolar o processo de alienação, antes limitado a fábrica, aos olhos dos cidadãos, agora consumidores.

Sobre esta mudança de identidade, que venho colocando intermitentemente em  análises durante este trabalho, é verdadeiro que a questão do consumo já não se limita mais a um processo de indução a compra pela propaganda aos diversos grupos sociais. Devemos observar suas derivações e conseqüências a curto e longo prazos.

Vivemos sob uma nova ordem mundial não tão definida assim, mas que é marcada pela supremacia norte-americana econômica e militar. Por modelo econômico vigente temos o neo-liberalismo como bandeira principal das economias do mundo, tanto as clássicas como as emergentes, e por conseguinte, o processo chamado globalização servindo de chamariz e justificativa para a abertura dos mercados, à invasão comercial e publicitária dos países centrais.

Globalização, por sua vez, faz alusão a um efeito simétrico de trocas culturais e econômicas entre países, facilitadas pelos avançados meios de comunicação. Porém é nítida a verdadeira produção ideológica em direção aos países periféricos visando a aculturação e a adesão de toda a multiplicidade étnica e cultural destes países ao consumo irrestrito de produtos e produções (cinema, shows, eventos culturais ) do eixo EUA-Europa-Japão.

É confirmada esta afirmativa a partir de dados sobre o disparate na América Latina e outros países periféricos que consomem por ano aproximadamente quinhentas mil horas de televisão. Em comparação com os países Ibéricos, estes consomem onze mil. Outra comparação é feita pela quantidade de videocassetes em residências que nos países andinos chega a mais de trinta por cento, enquanto na Itália não ultrapassa os vinte por cento deste produto24.

Acrescenta-se a estes dados o que já foi dito anteriormente sobre a produção automobilística, sabemos que esta atravessa uma séria crise de produção e consumo. Porém se analisarmos com minúcia a natureza desta crise da indústria automobilística, chegaremos a comprovação factual de que este caso é muito maior na Europa e EUA do que nos países Latinos, Africanos e Asiáticos. O que sustenta a lucratividade das grandes empresas européias e americanas é o consumo dos países periféricos. E a partir daí vemos a densa migração de montadoras como Peugeot, Mercedes, Renault para os países subdesenvolvidos industrializados como Brasil, Argentina, Chile, México e África do Sul.

O consumo altíssimo destes países conserva uma estrutura hierárquica vigente desde os períodos coloniais. O que mudou foram as instituições políticas destes países: outrora para adaptação de uma ordem hegemônica européia que nascia e que precisava de representantes políticos de mesma natureza nestes países periféricos que pudessem viabilizar a permanente exploração econômica. Hoje, vemos novamente uma transformação das estruturas políticas e instituições, que para sobreviverem precisam agir de acordo com os ditames econômicos norteados pelos projetos de consumo das grandes indústrias e grupos empresariais.

Nasce, pois, um novo tipo de identidade, a de consumidor, em contraponto a histórica concepção de cidadão que até o início do século XX existia isolada como personagem principal do teatro político encenado pela oposição Estado/Sociedade Civil. O consumo engendra uma adesão do mercado às diferentes nuanças do corpo social, naturalmente heterogêneo25. Grupos étnicos, antes marginalizados e fora do foco político, pelas instituições, Justiça, e outras estruturas que cerceiam o questionado campo da sociedade civil, ganham enfoque pelas lentes da mídia, e meios de comunicação. Mas o mercado apenas utiliza as diferenças para se apropriar dos grupos, pois a partir daí há o bombardeio ideológico com fins de consumo dos produtos específicos, feitos sob medida à estes grupos, antes isolados, agora explorados. Nestor Canclini estuda esta particularidade do sistema, e levanta o questionamento sobre a validade destes grupos, enquanto sujeitos neste processo de transformação do eixo cidadão/consumidor. É a bandeira da cidadania erguida pelo consumo, ou deveríamos chamar de máscara?

Mesmo com o excelente trabalho, confesso, do célebre autor, deveríamos enxergar algumas armadilhas ideológicas, se atribuirmos ao consumidor, características de indivíduo ativo neste caso, tal como o conceito de cidadão poderia oferecer. Primeiro, já comentamos em um capítulo anterior que a escolha dentro da ótica consumista revela muito mais a impossibilidade do indivíduo moderno (ator último desta vigente lógica de produção ) de se reconhecer ativo, do que uma expressão de liberdade esclarecida, garantida pela "democracia" neo-liberal de igualdade de direitos... de compra. Ao escolhermos e nos apropriarmos de um determinado produto (um carro por exemplo), estaríamos praticando uma forma vicária de exercer a cidadania, e a partir daí até podemos crer em uma postura de agente. Porém a questão entra em um beco sem saída quando tentamos dar a esse indivíduo auto-suficiência a ponto de quebrar um conceito forte como o de alienação e de uma ideologia de consumo, como a que vivemos hoje. O indivíduo moderno não sofre mais com a censura e a opressão de modelos ditatoriais nacionalistas financiadas pelo fordismo, porém sofre uma espécie de interdição, por conta do não reconhecimento de sua verdadeira condição, e uma impossibilidade de se desvincular dessa realidade, o que caracteriza um processo alienador. Embora o indivíduo moderno possa escolher entre o carro A e carro B, exercendo um legítimo direito, estes modelos A e B são opções a partir de uma batalha de marketing que os disponibilizaram na mídia, e que dentro de um leque de opções de A a Z  não apresentam nenhuma distinção estrutural que valha a diferença de preço entre eles. Além do que, esta tal liberdade, por mais que seja um exercício do poder de escolha, em nenhum momento reflete uma noção real de quanto vale cada peça do automóvel, cada engrenagem, quanto foi pago a cada profissional (poucos) na montagem, cada novidade de design que o caracterizou como um novo modelo de série, para poder, após isso, finalmente, comprá-lo. Sendo assim, está clara a condição de indivíduo alienado deste personagem consumidor.

Uma intelectualidade no seio dos consumidores tal como seria a de uma cidadania esclarecida, é um sonho realizável apenas em um nível de igualdade entre os indivíduos que não existe, e nunca existirá.

Porém Canclini trabalha bem os dois conceitos no que diz respeito a desconstrução das convenções a respeito das duas identidades: O de uma cidadania composta por indivíduos racionais e de consumidores predominantemente irracionais.

Respondemos então a mais uma pergunta proposta no início desse capítulo. Nós consumidores nunca chegaremos a saturação, pois o que consumimos é etéreo, não se delimita, e preenche alguma das carências dos indivíduos modernos. E no mais, estamos sob uma capa alienadora que faz classificar nosso direito de escolha, nossas potencialidades apenas enquanto consumidores, como um exercício legítimo de cidadania. Temos então, a explosão na mídia de pequenos programas sobre a qualidade dos produtos que são vendidos, a natureza da propaganda e sobre os direitos do consumidor. Mas nada disso é válido como um inato esclarecimento desse grupo identitário, pelo contrário é um arraigamento da ideologia do consumo que pode criar no máximo um sentimento de revolta contra o objeto de consumo, ou até a propaganda e a empresa, mas não nos faz reconhecer a subjetiva lógica do sistema e em que medida ela atua como propulsora de uma ideologia.

Vivemos, pois, sob a égide do consumo irreal e por si infinito. Nós consumidores, cidadãos modernos, ainda buscamos no real nossas angústias, procuramos nos objetos nossos sonhos, e por isso vive-se um ciclo infindável, incontrolável acobertado por um grosso véu alienador.

As grandes ideologias, as macro-teorias, as identidades nacionais, todas estas estão sob a mira implacável da pós-modernidade, mas cabe a nós reconhecermos em quê este novo tempo está sustentado. Reconhecermos, realmente, se não vamos mais encontrar novamente velhos antagonismos atrás de fragmentações localistas e identitárias, se não riremos ingenuamente agora de piadas que outrora não tinham nenhuma graça. Uma vez que nós, míopes indivíduos modernos, velhos cidadãos, novos consumidores, enxergamos o mesmo horizonte: único...unidimensional26.

NOTAS

 

 



1 O que pretendo dizer com essa referência ao existencialismo, é que sua difusão como forte corrente de pensamento se deu com muito mais força quando um colapso das macroteorias econômicas, como o marxismo e o liberalismo, foi sentido em todas as esferas do pensamento científico. O que se leva a concluir que no final do século XIX e início do século XX, toda e qualquer produção acadêmica nas Ciências Humanas objetivava tal eixo teórico bipolar. Assim podemos citar Jean-Paul Sartre, um marxista francês, que teve sua produção intelectual fortemente alterada com a invasão francesa pelos nazistas. Desde então conceitos como liberdade, e consciência de si, ambos conceitos fenomenológicos de cunho existencialista passaram a povoar os textos de Sartre, que popularizou este tipo de reflexão após a Segunda Guerra Mundial concomitantemente a crise das macroteorias político-econômicas citadas anteriormente.

 

2 TAYLOR & SAARINEN, 1990 apud BAUMAN, 1999.

 

3 BAUMAN, Zygmunt. 1999, p.07- 08.

 

4 FEATHERSTONE, Mike. 1994, p. 05.

 

5 MARCUSE, Herbert. 1982, p. 234-235.

 

6 id. 1982, p.13-15.

 

7 MARX, Karl. 1996.

 

8 FOULCAULT, Michel. 1979, p. 172.

 

9 HARVEY, David. 1989, p. 117.

 

10 WEBER, Max. trad: Carlos Babo, 1979.

 

11 ORTIZ, Renato. 1988, p. 15-18.

 

12 GOUNET, Thomas. 1992, p. 13.

 

13 De forma alguma pretendo desqualificar ou criticar a metodologia e basicamente o princípio das teorias    Pós-Modernas, e não só das teorias mas do rompimento com o clássico e o tradicional nas diferentes esferas de expressão humana como artes pláticas, cinema, teatro, etc. Todavia cito as teorias analíticas de final de século referentes a este seleto grupo, pois têm a ousadia de romper com a raiz de qualquer hipótese conceitual que se pauta no discurso. Tal raiz, o sujeito cartesiano, é a mola propulsora de basicamente todas as teorias em seus diversos campos de atuação, antagônicas ou não. Os Pós-Modernos procuram quebrar a espinha dorsal do indivíduo moderno, que é a racionalidade de sua ação. Sendo assim, este mesmo personagem sente-se melancólico ao ver as suas tradicionais instituições ruírem diante de seus olhos, e não terem mais em que se sustentar enquanto indivíduos sociais. O automóvel nada mais é do que uma das opções à esta ausência, a esta carência, como veremos mais a frente, portanto, o indivíduo se agarra aos prazeres e falsas virtudes que são idealizadas e alimentadas no seu imaginário, através do mito automóvel. Reitero, portanto a defesa dos autores Pós-Modernos como Derrida, Deleuze, Baudrillard e Foucault, e sua investigação crítica acerca das conveções que atravancam o pensamento social do final de século.

 

14 BAUDRILLARD, Jean. 1968, p.97.

 

15 id. 1968, p. 81-84.

 

16 op.cit. 1968, p. 74-79.

 

17Também não pretendo com esta afirmação culpar toda a cultura grega pela crise de identidade e de expectativas do indivíduo moderno. Apenas procuro chamar a atenção para a origem dessa concepção narcísica que é encarnada pelo indivíduo moderno, sua versão exarcerbada. O culto ao belo tinha para a cultura grega um significado completamente distinto do contemporêneo na cultura ocidental, assim como a racionalidade grega, germinada pelos parágrafos de Platão não tinha esse caráter tecnicista e empírico que vemos hoje. Ambos foram relidos e aplicados sugundo uma ótica iluministas, iniciado por Descartes no Renascimento, toda a ebulição teórica da europa nesta época refletia a ascenção da classe burguesa na época, desfigurando totalmente da realidade grega. Contudo como a própria designação Cultura Ocidental remete a Grécia Antiga, características e facetas do indivíduo moderno são reconhecidas na cultura grega, salvas as devidas proporções.

 

 

18 op. cit. 1968, p. 53-56.

 

19 op. cit. 1968, p. 148.

 

20 op.cit. 1968, p. 66.

 

21 LAGNEAU, Gérard. 1977,  p. 08-16.

 

22A metáfora do caráter persuasivo da propaganda expressa na crença no Papai Noel é uma das análises mais interessantes da Publicidade na obra O Sistema do Objetos ( p.175 ) de Baudrillard. Segundo ele a semelhança está no fato de que poucos acreditam ou reconhecem que não cremos no produto, mas acreditamos na publicidade que quer me fazer crer no produto. Assim é a mítica do Papai Noel, pois obviamente não acreditamos nele porém ele existe e se sustenta no imaginário do Natal até hoje. Dessa forma o que nos faz legitimar toda esta mítica do personagem com alegação de que este é o símbolo da inocência e da magia? Primeiro, diz o autor, que esta crença "é uma fabulação racionalizante que permite preservar na segunda infância a miraculosa relação de gratificação pelos pais ( mais precisamente pela mãe ) que caracterizara as relações da primeira infância "( p.176 ). Segundo, o personagem Papai Noel, na questão, fica subentendido, pois o que é consumido pelo imaginário deste é a solicitude, o carinho e a servidão dos Pais em relação aos filhos. A criança não crê no Papai Noel, crê, pois, na satisfação psicológica proporcionada pela crença no bom velhinho. Assim o consumidor, não crê na qualidade ou eficácia do produto, "crê na temática latente de proteção e gratificação à sua pessoa" ( idem ), garantindo-lhe uma falsa consciência de si.

 

23  op. cit. 1977, p. 22.

 

24 CANCLINI, Nestor. 1996, p. 30.

 

25 op. cit. 1996, p. 247-256.

 

26 op.cit. 1982, p.38.

  


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

 

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