ACILBUPER
- REVISTA DE CIENCIAS SOCIALES DE SANTIAGO DEL ESTERO N°4/10 - Diciembre 2002
- www.acilbuper.com.ar |
Uma análise do consumismo a partir do ícone automóvel
NOTA BIOGRÁFICA A obra "Ideologia do Consumo - Uma análise consumismo
a partir do ícone automóvel", foi a primeira monografia de
Alexandre Meira de Oliveira, à época formando de Bacharelado do curso
de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Orientado
pelo Professor Doutor Carlos Eduardo Rebello de Mendonça, este trabalho
conquistou nota máxima em sua defesa de monografia à 8 de março de 2002. |
O autor deste trabalho,
hoje, segue fazendo o Curso de Mestrado também em Ciências Sociais pela mesma
Universidade, e paralelamente trabalha como consultor pesquisador pelo Arquivo
Nacional além de lecionar sociologia em um colégio da região.
Ao final de 2002, concluiu seu segundo trabalho acadêmico, a monografia entitulada " Shopping / Fábrica: as duas faces da mesma moeda - um paralelo sobre dois símbolos do Capitalismo ", também conquistando nota máxima em sua respectiva defesa sob a orientação do mesmo professor.
Alexandre
Meira de Oliveira tem 24 anos e se envereda pela linha de pesquisa classificada
como Imagens, Narrativas e Práticas
culturais, neste dois trabalhou o consumo
como objeto de pesquisa. Considerado estando entre o discurso marxista e o
discurso frankfurtiano, estes trabalhos nunca foram publicados.
Abstract
This work
proposes a meticulous parallel about a double contradiction: Modernity x
Postmodernity and Capitalism of Production x Capitalism of Consumption. It
begins reconstructing the history of the capitalism from the Imperialism to the
current days using the automobile as object of discussion, once this object
crossed and it crosses these two stages that marked the century XX. The author
makes the analysis of the production practice so much as the subjective and
conceptual analysis of the called " Myth of the automobile ".
Palavras - chaves
Pós-Modernidade
- Consumo - ideologia
Índice AGRADECIMENTOS..................................................03 ÍNDICE.........................................................................04 INTRODUÇÃO.............................................................06 CAPÍTULO
I Uma breve análise das bases da ideologia do consumo.......15 CAPÍTULO
II A simbologia do automóvel no século XX
........................ 24 CAPÍTULO
III A publicidade para a ideologia do consumo ..................... 29 CONCLUSÃO Considerações finais .....................................................37 NOTAS
.......................................................................46 REFERÊNCIAS BLIOGRÁFICAS ...................................48 |
Introdução
É importante contextualizarmos o consumo na atualidade
para depois trabalharmos suas variantes e particularidades. Dentro deste processo
que vivemos é importante dizermos que nós atravessamos um período em que o
capitalismo procura se adaptar diante das diferentes crises que este vem sendo
obrigado a atravessar durante todo o século XX, uma sobrevida que não o isenta
de suas contradições e sua inerente lógica de exploração.
Sociedade do consumo é como se convencionou classificar este tipo novo
de "sociedade" que vemos emergir do solo arenoso e infértil do capitalismo
tardio. E como toda sociedade trás consigo um tipo de cultura que lhe convém,
eis a cultura do efêmero como característica
principal desta sociedade.
Durante todo século XX vimos na arena política idéias
e macro-teorias serem consumidas sob a forma de regimes e políticas de
desenvolvimento. Um duelo bipolar que dividiu o planeta e foi consagrado como
marca ideológica da sociedade industrial, anterior a que vivemos hoje. Com
exceção do Existencialismo, a sociedade industrial direcionou todas as formas
de pensamento, que se propusessem a explicar o ser humano e suas relações de
produção no mundo moderno, aos antagonismos latentes do capitalismo1
Nesta nova
sociedade ( uma reedição de um velho modelo ), vemos estas mesmas macro-teorias
ruírem diante do admirável mundo novo.
Verdades universais e ideologias que dividiam o mundo em dois pólos parecem não
resistir mais frente ao radicalismo de identidades locais. Nacionalismos e
extremismos perecem ser a forma mais eficaz hoje para se deter a onda global,
viabilizada pelos meios de comunicação, pela necessidade da informação.
Como definir essa sociedade, como
definir este final de século onde identidades de classes, nacionalidades e
fronteiras territoriais parecem ter sido removidas com a rapidez de um clique
no mouse?
É uma sociedade distinta realmente da que viu a
aurora do século XX, distinta da que viu Henry Ford criar o primeiro modelo de
automóvel e hoje vê produzir centenas de uma série, com a certeza de que serão
consumidos.
Pós-Modernidade é o nome, ou talvez a polêmica classificação deste período que vivencia a sociedade do consumo, algo muito maior do que uma simples etapa a ser superada. Prefiro definir desta forma pois assim se convencionou chamá-la, embora não acredite que deixamos a modernidade, pelo contrário, apropriamo-nos desta ainda mais em nossa cultura, levamos as últimas instâncias seu caráter racional, calculado, funcional. Levamos as entranhas da consciência do indivíduo o que antes era manipulação do imaginário social, a pós-modernidade elege o instinto em detrimento da razão, pois o instinto não mais é o caminho sem volta de qualquer conceituação analítica, como a filosofia, a sociologia ou antropologia. O instinto agora faz parte do processo, e de maneira arriscada podemos dizer que foi instrumentalizado. Hoje, propagandas publicitárias incitam desejos, estimulam reações, manejam o que há de mais incontrolável no ser humano para dominá-lo. O desejo na era do consumo não sugere realização, o desejo sugere mais desejo e realizá-lo seria o crepúsculo do sujeito contemporâneo, descentrado, sem horizontes, melancólico2.
Sendo
assim, esta nova moeda, a informação, é a ferramenta mais valiosa destes novos
tempos, pois a informação é superada a todo e qualquer instante por outra
informação, assim como os produtos. Assim é a cultura do efêmero.
Esta
sociedade que surge capaz de descosturar a dita colcha de retalhos que são as
diversas culturas e sua rigidez em relação ao local e a temporalidade, parece
brincar com representações históricas e contíguas como a relação tempo/espaço.
O que na sociedade industrial seria a supervalorização do tempo, com a cronometragem
do tempo de trabalho, a racionalização cada vez mais totalitária utilizando o
relógio como regulador das relações humanas desde as mais simples às mais
complexas, parece que foi superada pelo espaço, com valorização das vivências,
dos estudos culturais, das identidades locais e étnicas, como na bolsa de
valores e seus últimos índices sempre indicados por cidades e capitais. O
efêmero não se cronometra, pois um segundo, hoje, é pouco para o volume de
novidades na era da informação e do consumo. O espelho se sobrepõe ao relógio
na intimidade das relações humanas.
O espelho
é a marca desta nova era, pois o espelho
sugere a imagem. A imagem por sua vez
é o algoz da sociedade industrial. Na sociedade do consumo, o objeto a ser
consumido é o espelho das necessidades do indivíduo, encarnado no produto. O
sistema se adequou a lógica individual ( é o que se tenta passar de forma
ideologica e o consumidor apreende totalmente ) e não o indivíduo ao sistema,
como tentou durante décadas a sociedade industrial através da produção de
massa. Aliás, podemos fazer o contraponto, trabalhado muito bem por Bauman, se
esta é a sociedade do consumo, a
anterior pode ser considerada a sociedade
dos produtores3.
Devemos
então chamar a atenção para o fato de que a modernidade se adapta, assim como o
capitalismo procura diferentes formas para se reproduzir e não sucumbir diante
de suas próprias contradições. Dessa forma vemos a Pós-Modernidade como um
desdobramento da crise da razão na Modernidade e a Sociedade do Consumo como desdobramento
do capitalismo diante das crises as quais a Sociedade Industrial se colocou.
Mike
Featherstone lembra que é legitimada a idéia de que a cultura moderna foi
completamente assimilada como reflexo do capitalismo industrial4.
Dessa forma, abre-se um canal de associações ao tipo de realidade que vivemos
hoje, e de que forma o campo das idéias, (modelo de desenvolvimento), se liga
ao âmbito prático, de execução (modo-de-produção ).
Tamanha é
a diferença entre as vertentes lógicas do capitalismo que muitos reconhecem
este período como uma superaç ão
evolutiva do modo-de-produção, uma superação talvez entendida de maneira
equivocada, tentando-se trabalhar precipitadamente os fenômenos. Mas o que se
trata aqui é de uma nova adaptação do capitalismo às suas necessidades de
sustentação. Uma outra hipótese a ser debatida na Pós-Modernidade é a questão
da categoria trabalho como central nas relações dos homens entre si. Na chamada
sociedade dos produtores é visível o antagonismo de classe expresso na indústria,
por isso tínhamos nas relações trabalhistas o campo principal de luta, e local
de embate dos pólos opostos do sistema capitalista. Atualmente tal foi o
deslocamento na esfera de execução do capitalismo nas fábricas, da produção
para o consumo, que o proletariado tido como força real e revolucionária, é
cada vez mais desmobilizada e cooptada pela lógica corporativista e de
flexibilização. As identidades locais, étnicas superaram as macro-identidades
de trabalhador, de operário. O deslocamento dos eixos de produção trouxe
consigo todo o aparato ideológico aos olhos dos cidadãos comuns, agora chamados
consumidores, e tirou do proletariado a chave da mudança, do processo
revolucionário.
Ainda
sobre esta hipótese, é de suma importância chamarmos a atenção à posição
radical e ao mesmo tempo fiel às tradicionais vias da revolução, propostas
pelas teorias marxistas de Herbert Marcuse. Em A ideologia da sociedade industrial ele conclui que na sociedade
unidimensional, a sua prática totalitária e alienadora inviabiliza qualquer
forma de protesto e rejeição, pois sugere uma falsa idéia de soberania popular,
e o povo antes tido como fermento da transformação, hoje, é fermento da coesão
social5.
O
movimento deve vir de fora para dentro segundo ele, pois a falência dos antagonismos
e contradições diante do homem unidimensional é encarnada pelo trabalhador
atual, descentrado, corporativista e utópico. Por baixo desta camada
sacralizada pelas teorias revolucionárias, se esconde o chamado substrato dos
párias e estranhos, os negros, as mulheres,
os desempregados e deficientes, que
segundo o autor, são os excluídos do sistemas atualmente, que compõe
também a classe revolucionária, mas vêem a máquina exploradora de fora para
dentro, pois o sistema não tem capacidade de os englobar totalmente.
A chave da
mudança colocada acima, para este autor não foi tirada das mãos dos
trabalhadores, estes apenas não se reconhecem mais e não sabem como usá-la.
A Grande
Recusa, segundo Marcuse, está na quebra do racionalismo estéril proposto pela
modernidade, pelo industrialismo, na negação total ao que não se enxerga, na
liberdade completa, da maneira mais pura que o termo pode compreender. A
liberdade pela negação, em nome do irracional contra o mundo administrado. O
irracional é um manipulável instrumento da sociedade de consumo, mas passa a
ser a única chama acesa para a libertação.
Esse é o berço da sociedade de consumo, é
o contexto cultural que o novo século vai abrigar. O acirramento da diferença,
do antagônico, do moderno e do tradicional, do real e da ficção, a tal ponto
que o que era naturalmente oposto perde sentido, uma vez que todos nós,
indivíduos, estamos descentrados, perdemos nossos pontos de referência. Seres
humanos melancólicos e inertes frente a estroboscópica imensidão de produtos
que nascem e morrem na retina. É a letargia da Pós-Modernidade.
Então, por
que o automóvel em uma era que pode ser marcada pelo celular, pelo computador,
pela Internet? Todas estas são inovações e eventos que tem a cara desta nova
era, e podem simbolizar e caracterizar com mais clareza este período,
marcado pela mercantilização da
informação, da imagem e da ficção. Por que o automóvel, que parece ter que
dividir espaço no imaginário humano com estas novidades, ao contrário de antes,
onde o sonho de liberdade era possível para quem pudesse dirigir em alta
velocidade um Maverick ou um Porshe 936?
O
automóvel foi o carro chefe ( com o perdão do trocadilho ) do capitalismo
industrial, no início do século XX, e foi a verdadeira tábua de salvação para o
sistema que aperfeiçoou as formas de gerenciamento científico da produção,
dentro da indústria automobilística, para superar a crise pela disputa de
mercado que gerou a primeira guerra mundial.
Além disso
atravessou todo o século como símbolo de uma era e de uma disposição bipolar do
planeta, utilizado como autêntica arma ideológica de guerra em uma disputa por
áreas de influência. O sonho americano era representado pelo automóvel, assim
como a democracia, a liberdade, se confunde com a posse e o prazer de dirigir
um carro.
Hoje, vemos o automóvel ainda influenciar o
desenho urbano de todas as nações, perguntas sobre sua importância para
imaginário social de inúmeras gerações, e sua representação em uma Era é
colocada agora em novo contexto. A sociedade do consumo se apropria do
automóvel, mas em que condições políticas? A cultura do efêmero elege a novidade como propulsora do sistema, mas
de que forma através do automóvel?
O carro como
objeto de consumo é muito mais significativo do que qualquer outro objeto
em todo o século XX. O carro o é, pois foi capaz de atravessar todo um período
sendo artigo principal e adentrar este novo tempo se adequando às novas regras,
aos novos processos, e mais ainda instrumentalizado como força de consumo.
O imaterial trabalhado, ou seja, a simbologia acerca do mito que encerra o
automóvel é a marca principal deste tempo, e objeto de nossa pesquisa. Trabalharemos
de que forma o objeto e seu significado se confundem na sociedade do consumo,
como esta confusão estabelece uma dependência essencial para o funcionamento
do sistema.
Um estudo
semiológico do consumo é pertinente em uma época onde todas as teorias baseadas
nos modelos conceituais pertinentes a modernidade representam uma inovação
estrutural e mais do que isso, talvez uma das chances de se reconhecer o fenômeno
pós-moderno a partir dele mesmo. É o que faz Baudrillard ao trabalhar o mundo
da cultura a partir do objeto, e refaremos aqui sobre o ícone automóvel, estudando-o
em suas dupla relevância: instrumento e signo social.
Featherstone
reitera essa afirmação, enxergando o avanço que significa a metodologia de
Baudrillard, que analisa a hipertrofia cultural a partir de uma explosão
produtiva da informação tal como uma indústria, veiculada pela mídia e
suprimindo o significado em nome de
um mundo simulacional.
" Para Baudrillard, toda a tentativa de discutir as massas
viscosas em termos de normatividade, ou de análise de classes a maneira
Bourdieu, está fadada ao fracasso por ser uma forma de análise pertencente ao
estágio anterior ao sistema, agora ultrapassado." ( FEATHERSTONE, 1994 .p.10)
É exatamente essa a proposta neste trabalho, estudar
o consumismo enquanto ideologia, e a Pós-Modernidade enquanto pano de fundo e
suporte no plano das idéias na atualidade, a partir de conceitos que reconheçam
a Pós-Modernidade em suas particularidades, mas que de forma nenhuma deixem
velhos conceitos e antagonismos fugirem a nossa vista, como uma miopia que
unidimensionaliza o indivíduo moderno só deixando-lhe a melancolia de uma massa
instrumentalizada despida de ação.
A
publicidade e seu papel essencial na sociedade do consumo, sua estratégia de
convencimento a partir do objeto automóvel, a questão da evolução tecnológica,
os modelos, as séries, todas estas questões a serem levantadas nesse trabalho
tem como objetivo fazer um
estudo de reconhecimento da cultura do
efêmero, e de uma estrutura maior, uma lógica capitalista, que se
reorganiza tentando fugir de suas próprias armadilhas, de um sistema fadado a
disputa mortal, à sua autodestruição.
Para mais,
um rascunho histórico desta transformação estrutural do capitalismo segue este
trabalho na tentativa de tentar traçar todo o percurso do capitalismo
industrial ao capitalismo industrial avançado ou pós-industrial, carregando
como fio condutor, de uma ponta à outra do processo, o automóvel.
David
Harvey sintetiza todo este processo de reestruturação do capitalismo da
seguinte forma:
" A acumulação flexível foi acompanhada na ponta do consumo,
portanto, por uma atenção muito maior às modas fugazes e pela mobilização de
todos os artifícios de indução de necessidades e de transformação cultural que
isso implica. A estética relativamente estável do modernismo fordista cedeu
lugar a todo o fermento, instabilidade e qualidades fugidias de uma estética
pós-moderna que celebra a diferença, a efemeridade, o espetáculo, a moda e a
mercadificação de formas culturais" ( HARVEY, 1989. p. 148)
O
automóvel em todo século XX foi praticamente instrumento principal das empresas
capitalistas, essencial por sua vez na acumulação e exploração dos
trabalhadores. E hoje sustenta um universo de atividades paralelas, todas elas
ligadas a indústria automobilística e ao consumo de automóveis.
-
Uma breve análise das bases da ideologia do consumo -
O consumo para a sociedade
industrial tem papel determinante, uma vez que toda a dinâmica do capitalismo
hoje está em função do consumo rotinizado, do consumo instrumentalizado enquanto
parte do processo de acumulação de capital. Parafraseando novamente Marcuse,
dizemos que há muito tempo o processo de alienação rompeu os limites da fábrica,
a alienação faz parte do mercado, do processo de compra, da indução dos desejos,
das necessidades6. Há muito tempo que a sociedade ocidental
vem assistindo a um suposto encontro dos pólos opostos, e vem se tornando
unidimensional, composta por indivíduos unidimensionais, encobrindo possíveis
antagonismos, contradições inatas ao capitalismo em nome de uma padronização
dos instintos, de um controle dos anseios humanos, em nome de um "senso
de rebanho" extremamente visível em uma cultura massificada, mas ininteligível
por ela mesma.
O consumo pode ser visto em
toda e qualquer sociedade, porém ligá-lo única e exclusivamente ao capitalismo
é um erro. Em outras sociedades os indivíduos já consumiam, seja a produção
artesanal, seja a produção oriunda do trabalho escravo na Grécia
pré-representativa, por exemplo. O
consumo enquanto ação, ação esta de consumir bens e serviços produzidos é historicamente
reconhecível somente nos últimos séculos. Enquanto estimulador da razão de
produção ou orientador dos meios de produção e de comercialização para resposta
às necessidades multiformes, artificiais e supérfluas, é característico somente
das sociedades capitalistas modernas. Ou até, sob uma ótica marxista,
enxergá-lo como fruto de uma indução para a realização da mais-valia7
é somente possível em sociedades industriais. Uma vez que a lógica do
capitalismo é a exploração da mão-de-obra e acumulação de capital, o consumo é
a etapa do processo de acumulação que se contrapõe diametralmente a produção
industrial, mas a regula pela demanda, pela racionalização das necessidades dos
consumidores.
Sendo assim, é lícito para o
capitalismo que diferentes formas de execução tivessem sido adequadas às
estratégias burguesas de produção. Desde a revolução industrial, vemos a
produção cada vez mais tecnificada, quantificada. Do
taylorismo a acumulação flexível o capitalista estratificou a produção,
desvencilhou o operário do produto total através das táticas de gerenciamento
científico onde o saber gera o controle. O saber foi retirado das
mãos do operário, ou melhor foi compartimentalizado, fazendo com que o
trabalhador perdesse a noção do todo, a noção de controle e de poder. Numa das
claras leituras foulcaultianas sobre a história humana8,
o poder foi sempre exercitado e
controlado por quem sabe, a história
do capitalismo foi escrita por quem sabia da totalidade da produção, e não por
quem era explorado pelas mais-valias.
A verdade é que no caminho
traçado do taylorismo até os dias de hoje, o consumo induzido e generalizado
dos mercados estimulou a busca de várias áreas do globo para exploração do
trabalho e desejo do lucro monetário (uma vez que esta seria a lógica do
capitalismo, como foi dito há pouco), onde aos poucos a própria estrutura
política e econômica dos países que acomodavam tais mercados foram obrigadas a
se adaptar às constantes mudanças do capitalismo e da produção. Numa referência
a Lipietz, Harvey comenta sobre estes formatos particulares de produção e
reprodução do capitalismo em outras áreas do globo, de forma que um sistema de
produção capitalista nessas áreas e condições, poderia existir, o problema
seria a viabilidade ser alcançada a partir da modulação do comportamento de
todos os tipos de indivíduos, de todas as classes sociais, para a manutenção do
regime de acumulação9.
Com certeza a adaptação de
diferentes culturas aos modelos impostos de acumulação ministrados pelo
capitalismo é um processo complexo que utiliza muitos recursos sobretudo para
lidar diretamente com o imaginário social, com a população, uma vez que estes
são os consumidores em potencial. Uma cultura massificada é o projeto e o fim
último dos capitalistas que gerenciam a produção e transformam política e
economicamente os países celeiros de mercado consumidor, antes de manipularem
ideologicamente essa população no que diz respeito as suas necessidades e
desejos. A mídia, a propaganda, expressamente a televisiva, a Internet, são
mecanismos que reproduzem a ideologia da sociedade industrial em qualquer
território.
O próprio fordismo, se
quisermos trabalhar cronologicamente, após o taylorismo, mais do que a simples
introdução da linha de montagem (da esteira especificamente), Henry Ford tinha
o objetivo de dar aos trabalhadores renda e tempo suficiente para o lazer e por
conseguinte o consumo da produção industrial (HARVEY. 1989, p.121-123), um
corporativismo estatal que foi sonhado para um novo tipo de sociedade pelo
fordismo. Segundo o autor, isto presume que a fábrica, a produção, ou melhor o
capitalista tivesse controle sobre o quê e como os trabalhadores gastariam seu
dinheiro e lazer. Ou seja, desde sempre o capitalismo procurou pelo controle
dos anseios e necessidades humanas além da fábrica, das necessidades que estão
muito além do limite biológico e que colocam os indivíduos como singulares, o
capitalismo buscava padronizar as diferenças culturais, as particularidades
sociais que só são visíveis no campo da representação e do imaginário social. A
ética utilitarista e racional do capitalismo levado aos limites do psicologismo
social, descobrindo a fórmula para criar fantasmas, para manipular
representações, para criar mitos.
Explicitemo-nos com
minúcias, mais adiante, acerca deste aforismo: Criar mitos.
Tudo que foi colocado aqui
demostra claramente que o capitalismo utiliza todas as formas possíveis para
tentar se manter diante das crises que lhe são naturais. Por mais que se
concebam mudanças estruturais do taylorismo à acumulação flexível, estas só
foram possíveis através de muita exploração de mão-de-obra, que custou a vida
de milhares de trabalhadores (principalmente da indústria automobilística). Em
nome da acumulação de capitais, o empresário tenta manter-se
vivo na concorrência em um sistema onde a taxa de lucro tendencialmente
cai. Como vemos, o que se tem hoje, é o auge de toda a dinâmica de concorrência
do capitalismo utilizando o marketing e outras formas de coerção,
principalmente na venda de automóveis.
O modo-de-produção
capitalista leva adiante o processo irremediável de "desencantamento do mundo10" reconhecível principalmente
em toda e qualquer esfera do Ocidente.
O fordismo é a primeira
estratégia de produção industrial, depois do taylorismo, nascida da necessidade
de se ganhar da concorrência e tentar dominar o mercado desde já competitivo, a
ser utilizada em todo o mundo industrializado. É certo que o mundo
subdesenvolvido foi tragado pelos ideais de Henry Ford mais tarde, porém o
fordismo deve ser levado em conta por ser muito mais do que um método de
gerenciamento, e sim um projeto político, um projeto de nova sociedade. A
astúcia de Ford estava em enxergar que a produção de massa gerava consumo de
massa, e por conseguinte uma nova estética, uma nova psicologia, uma nova
sociedade ( Harvey. 1989, p. 121 ).
O fordismo pedia um sistema
político expansionista, de larga produção e protecionista isto é, o fascismo,
ou o New Deal, pós 29,
norte-americano. A ex-União soviética se utilizou do fordismo numa transição
entre o Leninismo e o Stalinismo, mas como sua economia não era concorrencial,
por se tratar de um Estado Socialista, não foi moldada, tal como os países
capitalistas industriais, uma sociedade de consumo. Mais tarde as ditaduras
latinas dos países de industrialização periférica. Ou seja, as instituições
políticas sempre se adequaram às estratégias de produção dentro de áreas de
influência. Assim, toda uma sociedade que se pauta em instituições (não só políticas) e representações,
sofre com este embate ideológico que
vem na mesma toada destas
transformações políticas e econômicas.
A propaganda, a indução
subliminar, a ideologia, giram em torno do problema: como se cria uma sociedade
de consumidores ideais?
O fordismo carregou até 1973 uma falsa
idéia da expansão eterna do pós-guerra. Como o próprio capitalismo em sua
essência, coube ao fordismo carregar a semente de sua destruição através do
massacre de culturas locais e através de um sistema vertical, hierárquico e
linear de produção que não resistiria à crises do sistema, como a do petróleo
em 1973. Ainda tendo de carregar consigo um sistema de seguridade social que só
era rentável a Estados Keynesianos que mantinham um crescimento regular, mas
que também gerava insatisfação e fortes tensões sociais na maioria dos países
capitalistas.
A rápida substituição do fordismo por
modelos mais flexíveis era inevitável, mais do que isso, era necessário.
Toda uma sociedade de
consumidores era orientada praticamente no mesmo ritmo de produção das fábricas. Por exemplo,
o Brasil, onde o fordismo apareceu de forma
tardia, e como nos outros países nestas condições, não tinha muitos recursos
para manter um sistema de seguridade social rigoroso, além de
ter uma fraquíssima composição sindical. O Brasil vivia politicamente uma
ditadura onde os ideais desenvolvimentistas estavam explícitos em todos os
veículos de comunicação, como o ideal do Brasil potência, a exaltação do mito do aparelho estatal como realização da nacionalidade, etc.
Podemos dizer, então que nós
começamos a viver a realidade de uma cultura de massa, os efeitos de uma
indústria cultural, antes até de termos um veículo de comunicação que
integrasse todo o país. Mesmo assim passamos a contracenar com um imaginário de
massa, com desejos de massa, o carro,
o sonho americano de liberdade,
outras formas de fantasia que nossa moderna
tradição estava sendo obrigada a
hospedar.
Renato Ortiz chega a
concluir que assumimos meio cegamente o ideal da modernização, em busca de uma
nacionalidade, de uma integração territorial e principalmente cultural, que não
havia sido adquirida em nenhum momento de nossa história, e que acabava também
por ser de extrema necessidade para a construção de uma cultura de massa. Por
isso o chamado silêncio acerca da
questão da industria cultural nesse período. A produção acadêmica estava
espremida pela censura ditatorial, e toda e qualquer produção intelectual
acabava por se referir direta ou indiretamente aos ditames da bipolaridade
mundial. O ideal gramisciano estava
muito mais presente que o questionamento acerca da cultura de massa, por
exemplo. Deixando a cabo da racionalização capitalista a integração nacional, a
partir de um processo que não deixa de ser o de aculturação11.
Vejamos o que Ortiz fala da
composição da cultura de massa:
"... a padronização promovida por e através de
produtos culturais só é possível por que repousa num conjunto de mudanças
sociais que estendem as fronteiras da racionalidade capitalista para a
sociedade como um todo. Na verdade todo o raciocínio de Adorno e Marcuse
procura mostrar que na sociedade moderna os espaços individualizados são
invadidos por esta racionalidade e integrados num mesmo sistema ( 1988, p. 49 )."
Observemos
que Ortiz fala da invasão de espaços individualizados pela racionalidade
capitalista, espaços que contém as nossas necessidades, nossas representações,
nossos anseios. Estes, pois, são invadidos e racionalizados, controlados.
Sem a
intenção de se aprofundar muito no psicologismo da questão, pelo menos por
enquanto, ressaltemos a constituição de representações no consciente coletivo.
Como ícones absorvidos por culturas diferentes, em nome de uma condução
consumista, conseguem se infiltrar no etéreo das íntimas relações humanas? E
como um ícone é "construído" e qual a função do mito para o sistema
de acumulação de capital?
Para finalizar
este breve capítulo sobre a formação da ideologia do consumo e sobre como ela
atua enquanto instrumento na execução da lógica capitalista de exploração de
mão-de-obra e acumulação de capital, falemos um pouco da mítica acerca do automóvel no século XX. Talvez em uma análise deste objeto de consumo estejam algumas das respostas para as questões
propositadamente levantadas neste capítulo. A entrada das formas de organização
do trabalho e produção, como o fordismo por exemplo, nos países capitalistas,
celeiros de mercados consumidores de massa, foram oriundas da necessidade dos
Estados Nacionais se comprometerem com um rentável ramo que movimenta cerca de
20% do PIB dos grandes países capitalistas12: A
industria automobilística.
O próprio
fordismo nasceu em uma indústria automobilística. E tamanha a capacidade de
Henry Ford de arrasar a concorrência através da produção de massa a um relativo alto custo de mão-de-obra,
levou em tempo recorde a produção artesanal da área à extinção. Como foi
dito anteriormente, o fordismo muito mais do que um consumo de massa,
necessitava de uma mentalidade de massa, sendo
aproveitado enquanto projeto político.
O automóvel, concluímos, no século XX se confunde com a
história da cultura de massa, e é alvo incessante da ideologia do consumo mesmo
não sendo mais um ramo de expansão crescente para o capitalista. Os países, em
especial do terceiro mundo, estão próximos da saturação, enquanto países
desenvolvidos já apresentam uma involução na produção automobilística.
Mesmo mais
tarde com o toyotismo, uma forma de adaptação das estratégias de produção,
tendo em vista as crises do petróleo e uma reação dura à modernidade na década
de 70, o automóvel continua como ícone, muito mais que para uma geração,
mas para uma era. O século XX, tão rápido e estreito quanto pensou Hobsbawn,
mas igualmente inflamável, executou praticamente boa parte do que os séculos
anteriores pensaram.
Vivemos as contradições de um modo-de-produção fadado
às crises de superprodução, e cada vez mais a rede ideológica se expande
comprimindo o homem moderno em um universo sem horizontes, a massificação
levada ao extremo. O extremo do pensamento único, sem revés, sem opressão explícita, simplesmente uma
interdição psíquica.
No auge
desta asfixia de expectativas, em meio a bombardeios de teóricos iconoclastas
que rompem com categoricamente tudo13,
o homem moderno se agarra em sonhos e mitos como o do automóvel. O automóvel
está ligado ao sonho de liberdade, de
velocidade, de auto-superação, o homem necessita de algo que seja capaz de
romper com os limites definidos de espaço e tempo, e se realizar através de uma
sobrevida mediada a cada novidade do mercado.
Esta
análise da ideologia do consumo se propõe a investigar através do mito do
automóvel, mais especificamente ainda, o trabalho de toda a máquina persuasiva,
como mídia, propaganda, toda a maquinaria de execução "espiritual" da lógica do capitalismo moderno.
Capítulo II
- A simbologia do automóvel no século XX -
Pensar o
que representa o automóvel para o século XX é pensar na ideologia do consumo
de massa. Não há objeto que tenha sido mais alvo da mídia, das agências de
marketing em todo o século XX, do que o automóvel (o carro).
E tentar
imaginar como o automóvel adquiriu tanto status
no sistema, significa esmiuçar toda a proposta, ou melhor, estratégia
capitalista de consumo. Segundo Gounet a fabricação de um automóvel, um objeto
de alta tecnologia e organização, acarreta a produção de quase 20 mil peças,
fora a produção indireta de acessórios e produtos relacionados a este. Um
sistema de serviços e organismos, todos ligados ao automobilismo e ao veículo
em si, é gerado e se sustenta a partir do imaginário que se tem do mito automóvel.
Praticamente,
o volume de dinheiro, serviços ligados ( marketing, crédito, etc.), empregos
direta e indiretamente criados são capazes de movimentar monetariamente de
15 a 20% tanto do PIB, quanto do comércio externo. Conclui-se que foi rentável
para as diversas economias do mundo, portanto necessário, abraçarem a indústria
automobilística como propulsora de seu crescimento, assim como alimentar este
verdadeiro símbolo da liberdade e da modernidade, como veremos a seguir.
Como foi dito no capítulo anterior, o gerenciamento
científico da produção capitalista, o fordismo e o toyotismo por exemplo,
nasceram na indústria automobilística e carregaram junto com seu produto final
toda a ideologia do sistema para os consumidores, os cidadãos modernos. À
semelhança efeito de uma epidemia, o mundo foi contaminado pelo ideal do
automóvel, fazendo com que as rodovias rabiscassem os mapas urbanos de todos os
países, e que estes praticamente se movimentassem sobre rodas, gerando a
obsolescência das baratas e tradicionais ferrovias do século XIX.
Porém é de
suma importância para o trabalho, que destrinchemos todo o processo de
persuasão que envolve a inserção do automóvel enquanto objeto de consumo no
mercado, passando pela propaganda e outros mecanismos que, a serviço de uma
lógica do consumo, atuam diretamente no imaginário social.
Baudrillard
é enfático ao afirmar que os objetos são a materialização
das relações humanas, e que tais exercem para o homem uma função
indissociável de receptáculo e incitador de desejos, frustrações, exercendo com
o seu possessor uma recíproca relação de significações, sendo até possível
avaliar a íntima relação simbólica do ser humano com os objetos como uma
falência das relações humanas14.
Para o
consumo na sociedade pós-moderna, os objetos são a verdadeira mola propulsora
dos instintos humanos, seja de qualquer natureza. E segue-se aí, o importante
fato de que os objetos atuais estão
gradativamente perdendo o significado que ainda tem os objetos antigos para os indivíduos (uma vez que
estes para Baudrillard tem toda uma simbologia garantida tanto pela sua
"longevidade" como sua origem geralmente artesanal, coisa extinta nos
objetos atuais15
), graças a produção em
série, graças a redução da vida útil dos objetos industrializados, graças a
toda uma manobra científica que mantém a massa sempre em busca de significações
que os objetos atuais genericamente
não possuem. A busca de uma personalização, de uma origem, de uma identidade. A
medida que os objetos se rotinizam e multiplicam em série, o homem moderno se
perde e se frustra em busca da autenticidade nos objetos, que este mesmo,
massificado, já não tem.
Partindo
desta eterna perseguição do ser humano à
sua completude distribuída nos objetos, como se dá a veiculação de ícones como
o automóvel, por exemplo,
praticamente uma paixão do indivíduo moderno?
Segundo
este mesmo autor, o carro em sua totalidade se contrapõe ao sistema doméstico e
sua ambiência. A esteticidade e a
disposição harmônica dos objetos no ambiente doméstico se constitui como um
pólo antagônico ao carro e toda sua dinâmica (embora em menor escala ) dos
objetos, principalmente a velocidade, a necessidade de se movimentar e o sonho
de estar livre. A privação e a interação até com os membros da família é
suplantada pelo deleite do poderio e da individualidade. O carro é mais do que
um meio de transporte para o indivíduo, é uma declaração de status e auto-suficiência dentro do
grupo16.
A chamada euforia dinâmica, segundo Baudrillard,
está sustentada no invólucro que o automóvel se constitui da intimidade sem
restrições, mas com as facilidades que a cotidianidade caseira oferece. Numa
projeção hiperbólica o autor compara a sensação proporcionada pelo automóvel à
sensação imaginada pelo homem em sua morte, a eternidade, a onipotência e a
supremacia individual.
Tudo isto
está presente no imaginário do cidadão moderno sobre o automóvel, que é
incitado pela mídia, e abraçado em forma de lucro monetário pelos capitalistas.
Como se pode observar, é algo presente nas representações coletivas de uma era,
ou melhor, da civilização ocidental como um todo.
É lícito
observar que todo o imaginário prescrito envolve a praticidade, a
racionalização do comando, da posse, em resposta e satisfação a um eu narcísico moldado pela cultura grega
e exacerbado por uma cultura consumista e carente17.
Toda a
estratégia publicitária sobre o automóvel se orienta pela incitação deste eu narcísico ( assim como todo tipo de
publicidade ), e se sustenta na cognição objeto
de consumo/objeto erótico18.
Noções como poderio e comando podem ser comparados a atividade do falo na
relação sexual. Vemos então a publicidade explorar toda essa questão através
dos comerciais e outras formas de comunicação de massa, assim também explora
normas sociais de gênero, como o automóvel enquanto objeto prioritariamente
masculino, e o ambiente doméstico enquanto feminino.
Uma outra
questão a ser levantada, é a da evolução tecnológica. Pensemos antes que
vivemos em um período onde a valorização do conteúdo está sendo suprimida cada
vez mais pela agradabilidade da estética, assim como há a valorização do
enunciado, entrando no contexto o discurso publicitário e suas formas de
expressão, em detrimento do conteúdo.
Dessa forma, a serialização é o que caracteriza a
produção em massa, e é normalmente revitalizada com inovações que constituem a
introdução de novos modelos a serem comercializados, e trabalhados pela mídia
para promoverem uma nova onda de consumo,
e assim por diante.
Só que
vivemos sob a ditadura da forma, do enunciado e nestas condições podemos dizer
que cada vez mais a diferença que faz nascer o modelo, se resume a uma
diferença mínima, acessória, e eu diria de certo modo irrisória, mas que é o
estopim de uma nova onda de consumo serial, em busca da originalidade do modelo.
Assim o
consumo automobilístico se resume a cada inovação em termos de design e aerodinâmica, em um aumento de
alguns cavalos de potência ou até na introdução do ar-condicionado a preço de
fábrica... Nada se constitui sobre uma evolução tecnológica vertical, e sim de
transformações visuais e acessórias que alimentam única e exclusivamente o
imaginário de massa .
Essa busca
incessante ao objeto-modelo, se confunde com uma necessidade de personalização19, uma busca à individualidade que o
homem moderno perdeu com a serialização dos objetos, algo de sua identidade
própria ou até social está perdida na distribuição em série dos objetos, que só
através da perseguição destes será de alguma forma suprida. A busca, que a falsa noção de escolha nos vende. A escolha
nada mais é que a falsa noção de liberdade
dos indivíduos no capitalismo, uma liberdade que ora se limita pela
disponibilidade financeira dos consumidores, ora pelo leque de opções de série
que o objeto de consumo nos permite.
O
automóvel, ou melhor a ideologia que carrega consigo o automóvel, tem estes
contornos utilitaristas que lidam muito mais com o psicológico do que qualquer
outra esfera de atuação humana, é o que faz deste objeto um mito. Trabalhadas assim de maneira
científica ganham contornos de maquiavelismo que o próprio Maquiavel se
sentiria constrangido, porém se torna facilmente reconhecível sem a capa
alienadora, nas ruas rasgadas pelos modelos GLs, GLSs, nos motores Zetec Rocam,
2.0, 2.8, que transitam tanto nossa realidade quanto nosso imaginário.
É o irreal
que na Pós-Modernidade toma o formato da realidade.
Capítulo III
- A publicidade
para ideologia do consumo -
Diante de
toda a discussão colocada anteriormente, desde as origens do consumo de massa
até o papel da industria automobilística engendrando todo esse processo no
século XX, cabe agora falar um pouco de como a publicidade se encarrega de
potencializar a compra, trabalhando diretamente com o imaginário da massa. Além
disso veremos que essa massa, não é entendida como um todo amorfo, e sim como
uma miríade de grupos e tribos, estudados minuciosamente a partir das pesquisas
de mercado e bombardeados pela publicidade direcionada, que também é consumida
de forma velada, imperceptível aos olhos do consumidor. A ideologia do consumo
trabalha basicamente em duas frentes: a
objetiva e a subjetiva, esta última responsável pela publicidade.
É lícito
observar que o sistema capitalista de produção era antes enfocado no processo
de produção de massa, onde a preocupação principal estava no excedente maciço.
O que se produzia e saía das fábricas era imposto de qualquer forma aos consumidores
vide um processo ideológico de construção de uma sociedade de massa, uma
sociedade de consumo, tal como pensava Henry Ford.
Embora as
duas extremidades ( produção / consumo ) façam parte do processo de produção
capitalista, perceptíveis aos olhos de Karl Marx desde o século XIX, o início
do século XX foi marcado por um investimento implacável nos meios de produção,
forças produtivas sendo aperfeiçoadas com a evolução das máquinas, e também as
relações de produção pelas novas políticas de gerenciamento científico. Os
produtos vindo das fábricas eram disponibilizados aos novos indivíduos moldados
por uma ideologia de crescimento industrial, muitas vezes nacionalista e que
levava ao consumo padronizado por parte dos cidadãos ( agora consumidores ),
principalmente no mercado interno.
Porém como é visto desde sua origem, o capitalismo é
o sistema das crises de superprodução, em suas diferentes formas. Sustentado na
concorrência, o capitalista estabelece verdadeiras cruzadas em busca do lucro
monetário agravado pela tendência estrutural de queda desta mesma taxa de
lucro. Mercados foram invadidos e o imperialismo levou o sistema a duas guerras
mundiais e a duas crises do petróleo.
Os
capitalistas, por sua vez castigados pela disputa acirrada e tendo cada vez
mais que superar as crises naturais do sistema, necessitam agora regular melhor
os investimentos, estudando, ou melhor, dissecando os até então consumidores de
massa literalmente bombardeados por uma política de consumo que muitas vezes
não se preocupava em ocultar seu lado repressor.
Crescem
pois os investimentos em atividades improdutivas, que seriam marketing,
propaganda, publicidade para cercar a dita massa de consumidores. É mister,
agora, conhecer este consumidor, trabalhando os grupos e as particularidades de
gênero, uma vez que o capital tem de ser bem investido, e a produção feita sob
medida para estes indivíduos.
Como
vemos, o investimento do capitalista está centrado na etapa diametralmente
oposta à produção da fábrica embora pertença ao mesmo processo: o consumo.
Segundo
Baudrillard o objeto de consumo pode ser considerado um alibi, a propaganda também o é, como segundo produto de consumo e
manifestação de uma cultura de massa20.
Deve-se
entender a respeito da propaganda dos objetos na pós-modernidade que ela é
representante de um conjunto social que se adapta ao indivíduo. O processo se
inverteu, antes era a sociedade de massa que se adequava ao processo de
produção, agora a publicidade vende a idéia do mundo globalizado adaptado a
lógica individual. O conforto, o bem-estar, a comodidade são axiomas recentes e
que interagem com o indivíduo na falsa idéia de servidão, da personalização, do
carro feito sob medida.
Antes de
reconhecer esta mudança, é importantíssimo caracterizá-la enquanto um processo
puramente ideológico e que de maneira nenhuma melhorou a vida do indivíduo,
pois se de alguma forma a publicidade vende de maneira subjetiva a imagem dessa
falsa adaptação da ordem social ao indivíduo, este paga de uma maneira bem
objetiva, adequando-se a regras e normas sociais bem diretas, encaminhadas pela
lógica do mercado em função de um universo suspenso pelo imaginário do
consumidor.
Para
Gérard Lagneau a publicidade é adotada como lubrificante
da economia e se manifesta sob a forma do fazer-valer21.
Embora correta a afirmação, percebo que essa definição é um pouco simplista
demais para a complexa precisão da publicidade nos dias de hoje na sociedade de
consumo.
Justifico
esta afirmação pelo fato de que a propaganda é por si só também objeto de
consumo e estabelece com o consumidor um equívoco
vital que propulsiona todo o mecanismo de busca incessante da mercadoria, busca
essa explicada no capítulo anterior.
A confusão
ou equívoco é alimentado pela ideologia da sociedade pós-moderna onde o poder
pelo gestual é substituído pelo controle
manual, onde a comodidade, o conforto são bandeiras que tentam passar o
indicativo do consumidor como agente principal do mundo global, e portanto
objetivo principal das mudanças e evolução, que a tecnologia pode trazer para
este.
Não. O
indivíduo, ou melhor, o consumidor é o objeto principal sim, mas de uma forte
produção ideológica que visa apreender todas as necessidades humanas pelos
objetos de consumo e por conseguinte controlar este mesmo personagem. Como
através de sua atividade limitada de escolha,
por exemplo, onde o consumidor inocentemente considera como uma forma de liberdade. O consumidor é uma peça, ou
até um instrumento, hoje nas mãos do
capitalista e do processo de produção.
O equívoco
citado anteriormente, que possibilita a crença e o consumo da propaganda, é
considerar este veículo (a publicidade ) como uma forma de valorizar a si
próprio enquanto consumidor. Este não acredita necessariamente na propaganda,
mas de certa forma sente-se lisonjeado,
ou melhor, sente-se importante, central, diante do convite a compra ou ao
produto. O consumidor é fisgado não pelo caráter de veracidade da propaganda ou
da qualidade do produto, mas pela satisfação narcísica da necessidade de se
considerar autêntico, importante, de se considerar sujeito.
Cabe como
comprovação desse mecanismo, frases propagandísticas como "feito sob medida para você", "numa concessionária perto de você", e outras que servem
para qualquer produto, mas que executam o mesmo fim: massagear o ego do
indivíduo moderno.
Assim a
publicidade se embrenha pelo etéreo das relações humanas. Baudrillard
metaforiza este mecanismo muito bem através da lógica do Papai Noel, em quem
muitas das vezes não se acredita, mas se considera22.
De maneira
mais abrangente a publicidade procura se antecipar as reações de todos os
indivíduos de um grupo a ser alcançado, uma vez que cada indivíduo tem sua
maneira de ler a propaganda e de receber a mensagem. Dessa forma se apreende as
características permanentes deste grupo, absorvendo a todos como uma rede,
todos no grupo se identificam com o proposto. Resistências são encontradas, mas
nunca contra a ideologia em si, sempre contra a abordagem da propaganda. Como
um estranhamento que faz o grupo refugar. Cabe a propaganda minar essa
resistência:
" Existem, assim, em cada grupo social suficientemente automizado
e para cada tipo de consumo, autoridades ( taste leaders ) que caucionam nosso
bem gosto. Falar em "mass media" é portanto iludir-se: o bombardeio
contínuo das mensagens não incide sobre as vítimas desarmadas e isoladas; a
publicidade investe na verdade contra grupos sociais, isto é, contra seres
coletivos e estruturados, protegidos e informados pelo que poderíamos
qualificar de zeladores ou porteiros culturais ( gate keepers)." (
LAGNEAU, Gérard. 1981, p.18 )
Mais do
que claro o fato de que existe uma resistência em cada grupo visado pelo
marketing de um objeto, e que trabalhar sobre o conceito de mass media seja um equívoco, é
importante salientar que as formas pós-modernas de produção e consumo não podem
ser consideradas apenas como soluções para as últimas fortes crises que o
capitalismo vem sofrendo. O toyotismo foi uma maneira de se tentar superar os
entraves do fordismo, ao contrário o capitalismo sucumbiria em outra crise como
a de 1973, e assim também ocorreu
com todos os mecanismos de acumulação flexível. Porém tais formas já levam
consigo problemas inatos que os transformam em propulsores de desigualdades
internas e de insustentabilidades futuras. As adequações que os métodos de
produção passam em função dos interesses da burguesia industrial são a prova
mais contundente da irregularidade do sistema como modo de produção. Hoje a
produção em série, o consumo direcionado se constitui pela necessidade dos capitalistas
de fazer valer seus produtos em um mercado cada vez menor e mais competitivo.
As artimanhas e o aperfeiçoamento das estratégias de marketing só demonstram um
acirramento fortíssimo da concorrência dos produtores para mercados restritos
diante de toda a desproporção de séries e modelos disponíveis que precisam ser
rotinizados, e ter uma vida útil controlada (mínima). Dessa forma esquizofrênica, que o mercado se agilizou, que a
propaganda embaçou os olhos dos cidadãos (incluídos aí os trabalhadores, toda a
massa potencial de consumo) e segue frenética incansável para o novo e sempre
vespertino colapso.
A
publicidade e seu caráter apelativo atual é o significado, é a alma que se
busca no objeto serial e nunca se encontra. O imaginário é consumido pela busca
incansável de si pelo produto, da personalização, da autenticidade. E eis então
o caráter conotativo que só a propaganda tem e a oferece de forma solícita
diante do consumidor.
Como
circula no âmbito da subjetividade a propaganda tem por objetivo facilitar a
veiculação de valores e normas culturais que sustentam a sociedade ao se
reproduzirem na mídia, e produzem ao se pautar no consenso e no unânime.
A
particularidade em toda publicidade está na dosagem exata do despertar do
indivíduo diante do produto, o despertar do desejo, da necessidade, pois este
despertar causa a busca que não se suprime totalmente com a compra, esta apenas
acalenta e se faz passível diante de um novo bombardeio de incitações.
A minúcia
acerca do caráter sugestivo e incitante da publicidade é calculada diante das
possibilidades de controle e satisfação do próprio objeto, isto de grupo para
grupo de consumidores. Esse processo de estímulo e desestímulo, mobilização e
desmobilização é o fator de prova de como a mídia em suas diversas expressões
condiciona e controla, pois trabalhar com os desejos e incitações é manobrar no
terreno perigoso do irracional. Toda incitação acerca de algo para o indivíduo
gera uma ação, e esta ação é que deve
ter rumo certo, deve ter destino, pois ações desproporcionais poderiam gerar
prejuízos para todo o sistema. Da mesma forma que pode gerar uma ação em
direção ao consumo, pode-se gerar outros tipos de ações, através da revolta,
etc. Vê-se então o caráter ideológico da propaganda e mais largamente da publicidade
de controle superestrutural, e por conseguinte controle social.
Para
finalizar, essa larga definição acerca da publicidade na ideologia do consumo
serve e é apropriada como objetivo de qualquer produtor capitalista. A
industria automobilística como grande movimentadora de capitais foi uma das
primeiras a celebrar a comunhão necessária em tempos de crise com a
publicidade. Segundo Lagneau, os empresários, antes céticos, conscientizaram-se
de que vender e produzir são objetivos de igual importância, e que em um
mercado altamente competitivo o investimento em publicidade pode garantir o
domínio e a liderança na concorrência, desde que se conheça bem a natureza da
demanda e o volume da oferta23.
A
propaganda de automóvel utiliza-se de todos os veículos da mídia ( televisiva,
radiofônica, etc. ) e através de patrocínios milionários se mantém onipresente
na vida cotidiana. Porém, todo o conteúdo subliminar que cerca o produto
durante a propaganda é imperceptível aos olhos comuns embora de maneira implacável
se engesse no inconsciente.
Antes do
jogo de futebol, antes do filme no horário nobre, homeopaticamente nos
intervalos do Jornal Nacional... e a família reunida recebe aquele conteúdo
mesmo que nem esteja prestando muito a atenção, isso não é importante no
momento... "Peugeot: Emoção em
movimento". Esta frase já é suficiente para que todo o imaginário
humano se projete através de associações, e o objetivo seja alcançado.
A
publicidade muitas das vezes comparada a uma magia (uma metáfora, claro), não
se conserva muito neste rótulo se percebermos nela o imperativo racional do
capitalista, o cálculo sustentando o subjetivo. A magia, porém, já ganhou o
caráter de um adjetivo, tamanha é a significação de sua natureza etérea,
enquanto a publicidade é cálculo, dedução e controle não sendo capaz de
sustentar o invólucro etéreo que só verdadeiras expressões de arte, como a
alquimia, podem ter.
Conclusão:
- Considerações finais -
Pretende-se
com esta conclusão não apenas encerrar uma discussão, mas suscitar várias
questões. Além disso devemos ter claro o caráter ativo do consumo na
pós-modernidade.
E consumo,
como se entende naturalmente, gera, também, uma saturação. Sob esta lógica
consumista nós, consumidores, chegaremos um dia a saturação?
Como se
pode dar fim, ou situar um limite ao consumo atual em que a proposta do consumo
serial nasceu de empresas concorrentes que disputam um mercado mínimo de
consumidores cada vez menos providos de bens líquidos (dinheiro)?
Chegamos a
este capítulo com a certeza que este sistema de manipulação de símbolos, que é
o consumo pós-moderno ou ideal de consumo, está a serviço de uma lógica
burguesa de acumulação de capital e é mais um instrumento do capitalista no
processo de produção. Sendo assim, o próprio capitalismo tardio ou avançado,
seja como for entendido, é pautado no ideal do consumo que manipula o
imaginário, modulando as necessidades humanas muito além do simples limite da
saturação.
Este
controle ou manipulação é fruto de uma tentativa de se superar a concorrência
avassaladora entre as empresas, que se viram obrigadas a investir em atividades
estéreis como propaganda e publicidade em geral, para poderem conquistar
os mercados em disputa. Então, o passe
de mágica. Sustentado por uma carência do indivíduo moderno em relação a sua
condição de sujeito na vida cotidiana, a propaganda vira objeto de consumo, é
absorvida, tragada pelo imaginário do homem comum que não se sacia, pelo
contrário, vicia-se. Como o acalanto na infância, o homem moderno procura os
objetos como parte de uma identidade que é vendida, pela propaganda, de maneira
homeopática, em cada novidade de séries.
Este pequeno adendo tenta mostrar como nossa vida
cotidiana está intimamente arrolada no processo de acumulação capitalista e
como nossos pequenos atos sofrem a influência de um instrumento, o ideal de
consumo. Este é superestrutural e tenta homogeneizar diferenças de classe,
nivelando toda uma disposição hierárquica de classe em nome de uma nova
definição de grupo: consumidor. Além disso, este adendo tenta explicar uma das
perguntas propostas inicialmente em todo o trabalho e expressadas neste
capítulo. É possível dar um fim a este processo?
A ação do
consumo embora seja compreendida como material aos olhos dos consumidores, se
dá de maneira irreal, sob a égide do imaginário. E por se tratar o consumo de
algo irreal, que não se define e por muito menos se delimita, este, por sua
vez, não tem fim. Nasce de uma apropriação do imaginário de grupos e se
reproduz sobre uma ausência, sobre uma necessidade de adquirir particularidades
daquilo que foi apropriado, e é aí que a lógica do capital se instala. O
consumo então, não tem fim.
Explicitemos
melhor: o consumo de automóveis, o modelo de apoio deste trabalho, vimos como
nasceu a indústria automobilística e como o capital se apropriou de um objeto
transformando-o em ícone, em símbolo, e a partir daí executou sua lógica de
produção em diversos países do mundo, mesmo atropelando idiossincrasias
culturais.
Então,
quando digo que o consumo (como instrumento de apropriação do imaginário no
capitalismo) é irrefreável, quero dizer, que por mais automóveis que se
produzam, se comprem, ou se vendam a famílias inteiras que sempre sonharam em
ter um automóvel, antes mesmo de ter uma casa própria, jamais serão saciadas
todas as categorias de necessidades irreais, ou seja do imaginário, que vem
junto com o produto, principalmente alimentadas pela propaganda.
Um
comercial de automóveis exibido atualmente na TV aberta, embora sendo uma
brincadeira publicitária, exemplifica claramente como se comporta o indivíduo
diante do produto e sua relação com o imaginário. O automóvel é o Peugeot 206, da empresa de mesmo nome,
cuja propaganda se realiza da seguinte forma: Primeiro um jogador de futebol
durante uma partida faz uma belíssima jogada, driblando vários adversários, até
fazer um autêntico golaço, levantando
a torcida e, consequentemente, nós consumidores em casa assistindo ao
comercial. Quando comemora o gol, o jogador simula um motorista, com as mãos
estendidas ao volante executando manobras e curvas, porém extasia-se tanto com
a simulação que começa a se esquivar dos abraços e cumprimentos dos próprios
companheiros de time, que estranham o olhar longínquo e realizado do jogador.
Nesse momento a cena é cortada para a exibição do próprio veículo, em estradas
e curvas, sendo guiado pelo ator que interpreta o próprio jogador, esta é a
projeção do imaginário do próprio jogador após o gol, para dentro do automóvel
expressando as mesmas emoções. Ao final desta cena (do automóvel e suas
características), aparece o jogador com o estádio completamente vazio, horas
mais tarde, executando as mesmas manobras de logo após o gol. "Peugeot
206: quem põe as mãos não tira da cabeça". O comercial termina com o
logotipo da empresa e o slogan: Peugeot:
Emoção em movimento.
São tantas as mensagens subliminares que se apropriam
da simbologia sobre o automóvel para tentar conquistar o consumidor, que a
propaganda em si é mais recheada de componentes que vão assegurar a compra, do
que o automóvel propriamente dito.
Comecemos
pelo fato de se tratar de uma comparação com o futebol. Por se tratar do
público brasileiro, em específico. A empresa publicitária se preocupou em
associar um ícone ao outro, o automóvel ou carro ao futebol, garantindo então a
procura de um público geral, uma vez que o carro é o modelo popular da empresa Peugeot.
Outra
característica é a alusão do prazer, do êxtase causado pelo automóvel e
oferecido pela propaganda, ao prazer do gol, momento inigualável e comumente
comparado a outros tipos de prazer, como
o sexual, principalmente pelo público brasileiro.
Esta é a
característica principal em propagandas de automóveis e a arma determinante: o
prazer que só a direção de um carro proporciona, uma projeção explicitada nos
capítulos anteriores. Neste comercial, esta característica foi explicitamente
trabalhada pela empresa de marketing do produto. E são estas necessidades,
estas emoções, que moveram o consumo do automóvel em todo século XX e vai mover
ainda durante o século XXI, pois o automóvel em si pode até ser superado
(projetando o descenso atual que vive a indústria automobilística), porém o
prazer, o êxtase, que é vendido pela propaganda e procurado no produto pelo
consumidor, esta necessidade nunca morre.
E é uma
necessidade que vai ser instigada pela propaganda a cada novo modelo que
surgir, o processo então é irrefreável, pois o indivíduo moderno acredita neste
equívoco como acredita no Papai Noel, sofrendo as mais amargas feições que o
processo ideológico de alienação da sociedade industrial pode provocar.
O consumo
não é saciável, pois é uma busca imaterial, portanto não se delimita. O consumo
também, não se freia, pois é incitado por empresas que concorrem pelo lucro
monetário decrescente. Ativa-se em um novo desdobramento do modo-de-produção
para sobreviver, ou seja, as empresas se auto-destroem, mas o ideal de consumo
sobrevive pela batalha ideológica de empresas publicitárias em nome dos
capitalistas concorrentes.
Como vemos
o capitalismo, carrega consigo ingredientes suficientes para um novo colapso.
Em uma
análise macro, o consumo é a etapa do processo de produção que o capitalista
teve de aperfeiçoar, de acordo com as crises do sistema, e aperfeiçoou de tal
maneira que conseguiu extrapolar o processo de alienação, antes limitado a
fábrica, aos olhos dos cidadãos, agora consumidores.
Sobre esta
mudança de identidade, que venho colocando intermitentemente em análises durante este trabalho, é verdadeiro
que a questão do consumo já não se limita mais a um processo de indução a
compra pela propaganda aos diversos grupos sociais. Devemos observar suas
derivações e conseqüências a curto e longo prazos.
Vivemos
sob uma nova ordem mundial não tão definida assim, mas que é marcada pela
supremacia norte-americana econômica e militar. Por modelo econômico vigente
temos o neo-liberalismo como bandeira principal das economias do mundo, tanto
as clássicas como as emergentes, e por conseguinte, o processo chamado globalização servindo de chamariz e
justificativa para a abertura dos mercados, à invasão comercial e publicitária
dos países centrais.
Globalização,
por sua vez, faz alusão a um efeito simétrico
de trocas culturais e econômicas entre países, facilitadas pelos avançados
meios de comunicação. Porém é nítida a verdadeira produção ideológica em
direção aos países periféricos visando a aculturação e a adesão de toda a
multiplicidade étnica e cultural destes países ao consumo irrestrito de
produtos e produções (cinema, shows, eventos culturais ) do eixo EUA-Europa-Japão.
É
confirmada esta afirmativa a partir de dados sobre o disparate na América
Latina e outros países periféricos que consomem por ano aproximadamente
quinhentas mil horas de televisão. Em comparação com os países Ibéricos, estes
consomem onze mil. Outra comparação é feita pela quantidade de videocassetes em
residências que nos países andinos chega a mais de trinta por cento, enquanto
na Itália não ultrapassa os vinte por cento deste produto24.
Acrescenta-se
a estes dados o que já foi dito anteriormente sobre a produção automobilística,
sabemos que esta atravessa uma séria crise de produção e consumo. Porém se
analisarmos com minúcia a natureza desta crise da indústria automobilística,
chegaremos a comprovação factual de que este caso é muito maior na Europa e EUA
do que nos países Latinos, Africanos e Asiáticos. O que sustenta a
lucratividade das grandes empresas européias e americanas é o consumo dos
países periféricos. E a partir daí vemos a densa migração de montadoras como
Peugeot, Mercedes, Renault para os países subdesenvolvidos industrializados
como Brasil, Argentina, Chile, México e África do Sul.
O consumo
altíssimo destes países conserva uma estrutura hierárquica vigente desde os
períodos coloniais. O que mudou foram as instituições políticas destes países:
outrora para adaptação de uma ordem hegemônica européia que nascia e que
precisava de representantes políticos de mesma natureza nestes países
periféricos que pudessem viabilizar a permanente exploração econômica. Hoje,
vemos novamente uma transformação das estruturas políticas e instituições, que
para sobreviverem precisam agir de acordo com os ditames econômicos norteados
pelos projetos de consumo das grandes indústrias e grupos empresariais.
Nasce,
pois, um novo tipo de identidade, a de consumidor,
em contraponto a histórica concepção de cidadão
que até o início do século XX existia isolada como personagem principal do
teatro político encenado pela oposição Estado/Sociedade Civil. O consumo
engendra uma adesão do mercado às diferentes nuanças do corpo social, naturalmente
heterogêneo25. Grupos étnicos, antes
marginalizados e fora do foco político, pelas instituições, Justiça, e outras
estruturas que cerceiam o questionado campo da sociedade civil, ganham enfoque
pelas lentes da mídia, e meios de comunicação. Mas o mercado apenas utiliza as
diferenças para se apropriar dos grupos, pois a partir daí há o bombardeio
ideológico com fins de consumo dos produtos específicos, feitos sob medida à estes grupos, antes isolados, agora explorados.
Nestor Canclini estuda esta particularidade do sistema, e levanta o
questionamento sobre a validade destes grupos, enquanto sujeitos neste processo
de transformação do eixo cidadão/consumidor. É a bandeira da cidadania erguida pelo consumo, ou deveríamos chamar de
máscara?
Mesmo com
o excelente trabalho, confesso, do célebre autor, deveríamos enxergar algumas
armadilhas ideológicas, se atribuirmos ao consumidor, características de
indivíduo ativo neste caso, tal como o conceito de cidadão poderia oferecer.
Primeiro, já comentamos em um capítulo anterior que a escolha dentro da ótica consumista revela muito mais a
impossibilidade do indivíduo moderno (ator último desta vigente lógica de
produção ) de se reconhecer ativo, do que uma expressão de liberdade esclarecida,
garantida pela "democracia"
neo-liberal de igualdade de direitos... de compra. Ao escolhermos e nos
apropriarmos de um determinado produto (um carro por exemplo), estaríamos
praticando uma forma vicária de exercer a cidadania, e a partir daí até podemos
crer em uma postura de agente. Porém a questão entra em um beco sem saída
quando tentamos dar a esse indivíduo auto-suficiência a ponto de quebrar um
conceito forte como o de alienação e de uma ideologia de consumo, como a que
vivemos hoje. O indivíduo moderno não sofre mais com a censura e a opressão de
modelos ditatoriais nacionalistas financiadas pelo fordismo, porém sofre uma
espécie de interdição, por conta do
não reconhecimento de sua verdadeira condição, e uma impossibilidade de se
desvincular dessa realidade, o que caracteriza um processo alienador. Embora o
indivíduo moderno possa escolher entre o carro A e carro B, exercendo um
legítimo direito, estes modelos A e B são opções a partir de uma batalha de
marketing que os disponibilizaram na mídia, e que dentro de um leque de opções
de A a Z não apresentam nenhuma
distinção estrutural que valha a diferença de preço entre eles. Além do que,
esta tal liberdade, por mais que seja
um exercício do poder de escolha, em nenhum momento reflete uma noção real de
quanto vale cada peça do automóvel, cada engrenagem, quanto foi pago a cada
profissional (poucos) na montagem, cada novidade de design que o caracterizou como um novo modelo de série, para poder,
após isso, finalmente, comprá-lo. Sendo assim, está clara a condição de indivíduo
alienado deste personagem consumidor.
Uma
intelectualidade no seio dos consumidores tal como seria a de uma cidadania
esclarecida, é um sonho realizável apenas em um nível de igualdade entre os
indivíduos que não existe, e nunca existirá.
Porém
Canclini trabalha bem os dois conceitos no que diz respeito a desconstrução das
convenções a respeito das duas identidades: O de uma cidadania composta por
indivíduos racionais e de consumidores predominantemente irracionais.
Respondemos
então a mais uma pergunta proposta no início desse capítulo. Nós consumidores
nunca chegaremos a saturação, pois o que consumimos é etéreo, não se delimita,
e preenche alguma das carências dos indivíduos modernos. E no mais, estamos sob
uma capa alienadora que faz classificar nosso direito de escolha, nossas
potencialidades apenas enquanto consumidores, como um exercício legítimo de
cidadania. Temos então, a explosão na mídia de pequenos programas sobre a
qualidade dos produtos que são vendidos, a natureza da propaganda e sobre os direitos
do consumidor. Mas nada disso é válido como um inato esclarecimento desse grupo
identitário, pelo contrário é um arraigamento da ideologia do consumo que pode
criar no máximo um sentimento de revolta contra o objeto de consumo, ou até a
propaganda e a empresa, mas não nos faz reconhecer a subjetiva lógica do
sistema e em que medida ela atua como propulsora de uma ideologia.
Vivemos,
pois, sob a égide do consumo irreal e por si infinito. Nós consumidores,
cidadãos modernos, ainda buscamos no real nossas angústias, procuramos nos
objetos nossos sonhos, e por isso vive-se um ciclo infindável, incontrolável
acobertado por um grosso véu alienador.
As grandes
ideologias, as macro-teorias, as identidades nacionais, todas estas estão
sob a mira implacável da pós-modernidade, mas cabe a nós reconhecermos em
quê este novo tempo está sustentado. Reconhecermos, realmente, se não vamos
mais encontrar novamente velhos antagonismos atrás de fragmentações localistas
e identitárias, se não riremos ingenuamente agora de piadas que outrora não tinham nenhuma graça. Uma vez que nós, míopes
indivíduos modernos, velhos cidadãos, novos consumidores, enxergamos o mesmo
horizonte: único...unidimensional26.
NOTAS
1 O que pretendo dizer com essa referência ao existencialismo, é que sua difusão como forte corrente de pensamento se deu com muito mais força quando um colapso das macroteorias econômicas, como o marxismo e o liberalismo, foi sentido em todas as esferas do pensamento científico. O que se leva a concluir que no final do século XIX e início do século XX, toda e qualquer produção acadêmica nas Ciências Humanas objetivava tal eixo teórico bipolar. Assim podemos citar Jean-Paul Sartre, um marxista francês, que teve sua produção intelectual fortemente alterada com a invasão francesa pelos nazistas. Desde então conceitos como liberdade, e consciência de si, ambos conceitos fenomenológicos de cunho existencialista passaram a povoar os textos de Sartre, que popularizou este tipo de reflexão após a Segunda Guerra Mundial concomitantemente a crise das macroteorias político-econômicas citadas anteriormente.
2 TAYLOR &
SAARINEN, 1990 apud BAUMAN, 1999.
3 BAUMAN, Zygmunt. 1999, p.07- 08.
4 FEATHERSTONE,
Mike. 1994, p. 05.
5 MARCUSE,
Herbert. 1982, p. 234-235.
6 id. 1982, p.13-15.
7 MARX, Karl. 1996.
8 FOULCAULT,
Michel. 1979, p. 172.
9 HARVEY, David. 1989, p. 117.
10 WEBER, Max. trad: Carlos Babo, 1979.
11 ORTIZ, Renato. 1988, p. 15-18.
12 GOUNET, Thomas. 1992, p. 13.
13
De forma alguma pretendo desqualificar ou criticar a metodologia e basicamente
o princípio das teorias Pós-Modernas,
e não só das teorias mas do rompimento com o clássico e o tradicional nas
diferentes esferas de expressão humana como artes pláticas, cinema, teatro,
etc. Todavia cito as teorias analíticas de final de século referentes a este
seleto grupo, pois têm a ousadia de romper com a raiz de qualquer hipótese
conceitual que se pauta no discurso. Tal raiz, o sujeito cartesiano, é a mola
propulsora de basicamente todas as teorias em seus diversos campos de atuação,
antagônicas ou não. Os Pós-Modernos procuram quebrar a espinha dorsal do
indivíduo moderno, que é a racionalidade de sua ação. Sendo assim, este mesmo
personagem sente-se melancólico ao ver as suas tradicionais instituições ruírem
diante de seus olhos, e não terem mais em que se sustentar enquanto indivíduos
sociais. O automóvel nada mais é do
que uma das opções à esta ausência, a esta carência, como veremos mais a
frente, portanto, o indivíduo se agarra aos prazeres e falsas virtudes que são
idealizadas e alimentadas no seu imaginário, através do mito automóvel. Reitero, portanto a defesa
dos autores Pós-Modernos como Derrida, Deleuze, Baudrillard e Foucault, e sua
investigação crítica acerca das conveções que atravancam o pensamento social do
final de século.
14 BAUDRILLARD, Jean. 1968, p.97.
15 id. 1968, p.
81-84.
16 op.cit.
1968, p. 74-79.
17Também não pretendo com esta afirmação culpar toda a cultura grega pela crise de identidade e de expectativas do indivíduo moderno. Apenas procuro chamar a atenção para a origem dessa concepção narcísica que é encarnada pelo indivíduo moderno, sua versão exarcerbada. O culto ao belo tinha para a cultura grega um significado completamente distinto do contemporêneo na cultura ocidental, assim como a racionalidade grega, germinada pelos parágrafos de Platão não tinha esse caráter tecnicista e empírico que vemos hoje. Ambos foram relidos e aplicados sugundo uma ótica iluministas, iniciado por Descartes no Renascimento, toda a ebulição teórica da europa nesta época refletia a ascenção da classe burguesa na época, desfigurando totalmente da realidade grega. Contudo como a própria designação Cultura Ocidental remete a Grécia Antiga, características e facetas do indivíduo moderno são reconhecidas na cultura grega, salvas as devidas proporções.
18 op. cit. 1968, p. 53-56.
19 op. cit. 1968, p. 148.
20 op.cit. 1968, p. 66.
21 LAGNEAU, Gérard. 1977, p. 08-16.
22A metáfora do caráter persuasivo da propaganda expressa na crença no Papai Noel é uma das análises mais interessantes da Publicidade na obra O Sistema do Objetos ( p.175 ) de Baudrillard. Segundo ele a semelhança está no fato de que poucos acreditam ou reconhecem que não cremos no produto, mas acreditamos na publicidade que quer me fazer crer no produto. Assim é a mítica do Papai Noel, pois obviamente não acreditamos nele porém ele existe e se sustenta no imaginário do Natal até hoje. Dessa forma o que nos faz legitimar toda esta mítica do personagem com alegação de que este é o símbolo da inocência e da magia? Primeiro, diz o autor, que esta crença "é uma fabulação racionalizante que permite preservar na segunda infância a miraculosa relação de gratificação pelos pais ( mais precisamente pela mãe ) que caracterizara as relações da primeira infância "( p.176 ). Segundo, o personagem Papai Noel, na questão, fica subentendido, pois o que é consumido pelo imaginário deste é a solicitude, o carinho e a servidão dos Pais em relação aos filhos. A criança não crê no Papai Noel, crê, pois, na satisfação psicológica proporcionada pela crença no bom velhinho. Assim o consumidor, não crê na qualidade ou eficácia do produto, "crê na temática latente de proteção e gratificação à sua pessoa" ( idem ), garantindo-lhe uma falsa consciência de si.
23 op. cit. 1977, p. 22.
24 CANCLINI, Nestor. 1996, p. 30.
25 op. cit. 1996, p. 247-256.
26 op.cit. 1982, p.38.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAUDRILLARD,
Jean. O sistema dos objetos. 4º ed.
São Paulo, Perspectiva, 1968.
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as
conseqüências humanas. 2º ed. Rio de Janeiro, J. Zahar, 1999.
BURAWOY, Michael. A transformação dos regimes fabris no capitalismo avançado. Revista Brasileira de Ciências Sociais, ano 5, junho de 1990.
CANCLINI, Nestor. Consumidores e Cidadãos; conflitos
multiculturais da globalização. 2º ed. Rio de Janeiro, UFRJ, 1996.
FEATHERSTONE, Mike. Para uma
sociologia da cultura pós-moderna. Revista Brasileira de Ciências Sociais,
ano 9, junho de 1994.
FOULCAULT, Michel. Microfísica do
Poder. 1º ed. Rio de Janeiro, Graal, 1979.
GOUNET, Thomas. Fordismo e
Toyotismo na civilização do automóvel. 1º ed. São Paulo, Boitempo, 1992.
HARVEY, David. Condição Pós-
Moderna. 7º ed. São Paulo, Loyola, 1989.
JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo:
a lógica cultural do capitalismo tardio. 2º ed. São Paulo, Ática, 1997.
LAGNEAU, Gérard. A sociologia da
publicidade. 2º ed. São Paulo, Cultrix, 1977.
MARCUSE, Herbert. A ideologia da
sociedade industrial. [ o homem unidimensional ] 6º ed. Rio de Janeiro, J.
Zahar, 1982.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I.
Vol I. 15º ed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1996.
ORTIZ, Renato. A moderna tradição
brasileira. 3º ed. São Paulo,
Brasiliense, 1988.
SHWARTZ,
Tony. Mídia: o segundo Deus 2º ed. São Paulo, Summus, 1985.
WEBER, Max. Ensaios de sociologia
5º ed. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 1987
ACILBUPER
- REVISTA DE CIENCIAS SOCIALES DE SANTIAGO DEL ESTERO N°4/10 - Diciembre
2002 - www.acilbuper.com.ar |